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Pedro Rolo Duarte

07
Dez09

Um fumador a dormir

(Crónica da revista de sábado do "i" dedicada ao tema "Nós, Viciados"...)
 

Se um tipo de Marktest me apanhasse na rua e me pedisse para responder a um inquérito sobre vícios, eu dizia que sim. Sim, eu sou viciado. Em quê? Em tabaco. Cigarros. Fumador.

- E quantos cigarros fuma por dia?, perguntaria o inquiridor.
- Nenhum, responderia eu.

E a partir daqui tínhamos um problema. Eu tinha de explicar o que nenhum quadrado de um inquérito contempla, o que as estatísticas não podem considerar – não é sim, não é não, não é talvez, não é “não sabe/não responde” -, o que não se explica ou não se percebe a não ser que se viva ou se resista.

É o que vou tentar fazer.

Fumei o meu último cigarro às 11 horas da manhã do dia 4 de Abril de 2006. À época, fumava dois a três maços por dia – o que incluía acordar a meio da noite para fumar, violar as normas da aviação e fumar, escolher cinemas com intervalo para fumar, e outras maluquices do mesmo género. A vida, os dias, a forma como escrevia, tudo era definido em função do tabaco. Fazia parte daqueles que defendem que o “fumo indirecto” é uma invenção dos não-fumadores e das companhias de seguros, e nunca dei o devido valor a quem, não fumando, me aturou anos a fio nesta nuvem de fumo, da minha mãe à mãe do meu filho, passando por alguns dos melhores amigos. Nem falando do próprio filho, que passou anos a escrever ao Pai Natal pedindo que o pai deixasse de fumar.

Conseguiu o que queria, e ainda bem. Sou mais feliz hoje por não fumar – e o que custou, e o que passei, não foi bom nem desejo a ninguém.

Passaram três anos e meio. Não tenho saudades de fumar, ainda que a ansiedade tenha ganho uma nova dimensão nos dias e a sensação de que me falta qualquer coisa seja permanente. Como Smint’s como quem fuma – e os 12 quilos a mais na balança persistem em lembrar-me que como e bebo mais, nem que seja água, nem que seja bolacha integral.

Não sei o que me falta, mas sei que me falta sempre qualquer coisa. Deixei de saber o que fazer com as mãos num ambiente que me intimide. Como se não bastasse, os cigarros passaram a constituir um problema – a garganta entope e a tosse renasce sempre que estou em ambientes de fumo, o cheiro do tabaco desagrada-me e sinto-o mais do que os não-fumadores que me rodeiam. Não aguento muito tempo num bar ou discoteca onde toda a gente fume.

No entanto...

No entanto, sempre que a dormir sonho - e me lembro do que sonhei – há cigarros envolvidos. Sonho que fui “apanhado” a fumar, sonho que fumo a marca de cigarros que o meu pai fumava, sonho que experimento alternativas aos cigarros, sonho com charutos, sonho que fui dispensado porque fumava, sonho que sou elogiado porque ainda fumo, sonho com o cheiro do tabaco. Sonho sempre. Sempre.

E acordo sempre num estado de agitação, de ansiedade, que me obrigam a fazer um ponto de situação e, por fim, descontrair: estava a dormir... São sonhos realísticos, muito plausíveis, que despertam complexos de culpa e falhanços inexistente – muito incomodativos, mesmo que a psicologia me diga que são “excelentes indicadores de que está a ultrapassar o estado adicto”...

A verdade é só uma: ainda que dos meus dias esteja arredado o vício que me acompanhou durante 30 anos, ainda que o incómodo que o tabaco hoje me provoca indicie sucesso na empreitada, os sonos agitados e os sonhos obsessivos dizem-me que continuo, três anos e meio depois, o mesmo fumador que era. Apenas me dei ao luxo de me maltratar, impedindo-me de fumar. Felizmente, claro.

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