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Pedro Rolo Duarte

16
Out10

A açorda que mudou tudo

(Esta crónica foi escrita a convite da revista do Clube Gourmet do El Corte Inglês. Saiu na ultima edição.

O meu pai faria hoje anos e o que aqui conto devolve-me essa memória. E a saudade.)

 

Sei fritar bifes e cozer esparguete desde os 15 anos. Nunca tive medo da cozinha – mas sempre alimentei um prudente respeito pelos mistérios que encerra. A minha mãe cozinha bem – são “famosos” os seus pastéis de bacalhau ou o peixe assado no forno -, o meu pai era um especialista na arte de assar sardinhas, a minha irmã faz arroz como ninguém e o meu irmão viajava com facilidade entre a patanisca e o mais delicado prato de carne.

Neste quadro, o meu esparguete com ketchup ou os bifes fritos em alho, louro e azeite, nunca foram mais do que manuais de sobrevivência.

Porem, um dia – há sempre um dia... -, vai para dez anos  (lembro-me tão bem....),  cheguei a casa tarde, estafado, e ao olhar para os restos do jantar da família pensei: não é nada disto que me apetece, o que eu comia agora era uma açorda de gambas...

Dada a minha tendência para a teimosia – que não tomo por condição, mas por condenação, dizem que os Touros são assim... -, decidi que naquela noite ia contrariar a ordem natural das coisas. Fui a uma cervejaria ali das redondezas e comprei camarões, passei numa loja de conveniência para completar o pão que já tinha a casa, e abri um livro de receitas da incontornável Lourdes Modesto.

Segui as indicações à risca – e pela uma da madrugada, sozinho, na cozinha, eu provava uma razoável açorda de gambas. O tempo explicou-me que não estava excelente, como a que hoje faço, mas nas condições existentes roçava a perfeição.

O que conto é absolutamente rigoroso: naquela hora que passei na cozinha, entre o livro de receitas, os camarões, o pão, o azeite, o alho, os coentros, e a insegurança sobre o resultado final, eu senti-me a pairar sobre o mundo, entregue a algo que me levava “daqui para fora”, concentrado na irrelevância de picar um alho, dedicado ao esfarelar manual do pão. Senti-me tão profundamente feliz que percebi, naquele instante, que algo estava a mudar na minha vida.

O que mudava era o olhar sobre o acto de cozinhar. E nesse dia, o adolescente dos bifes e do esparguete transformou-se no adulto apaixonado pela cozinha, fascinado pela transformação dos alimentos em pratos deliciosos, e interessado em aprofundar aquela súbita e inesperada paixão.

O passo seguinte foi o óbvio passo seguinte: se cozinhar é em si um prazer inexplicável, que dizer de ver os nossos amigos, a nossa família, deliciar-se com o que cozinhamos? O degrau é curto e imediato: quando descobri que gostava de cozinhar, descobri também que o prazer da cozinha passa tanto pelo acto de criar como pela consequência de o partilhar.

Passados dez anos, cozinhar tornou-se para mim mais ou menos o mesmo que respirar ou dormir: faz parte dos meus dias, não me incomoda nada que seja diário e obrigatório, e constitui um prazer que disputa espaço com a escrita e o jornalismo.

É desconcertante quando alguém diz que gosta, “mas só se for para amigos e nunca por obrigação” – porque para mim dá igual: cozinho para mim, para dois, para três ou para vinte. O prazer de cozinhar está na sua essência, não no objectivo que persegue. E, como contei, tudo começou num dia que correu menos bem.

O que me leva a pensar que toda a arte – a gastronomia é uma arte – resulta da soma do prazer de quem cria com o prazer de quem consome. O prazer é o mesmo. Por isso, o final feliz também.

 

PS – Já agora, claro, fica a receita da açorda culpada de tudo isto (sem quantidades, gestão ao critério do cozinheiro): coza o camarão em água com muito sal e meia cebola. Se for congelado, o camarão está cozido um minuto depois da água levantar fervura. O mesmo é dizer: é muito rápido. Guarde a água da cozedura, descasque os bichos, atire cascas e cabeças para a água que os cozeu, e deixe ferver esse caldo uns bons dez minutos, tempo mais que suficiente para desfazer à mão o pão (costumo misturar pão alentejano com pão normal de padaria lisboeta).

Num tacho, um fundo de azeite, alho picado. Lume. Quando o alho começa a estalar, o pão desfeito dentro do tacho aquece um instante, e sem parar de mexer com colher de pau, vai misturando a água que serviu para cozer o camarão (água obviamente passada por uma rede, para ficar sem cascas nem cabeças...). Agora é tudo uma questão de gestão de tempos e interesses: a água evapora, acrescenta-se um pouco, o lume brando apura açorda, tudo vai ganhando consistência. Quando ganhar o ponto que interessa ao comensal, é só largar os camarões descascados lá dentro, um ramo de coentros devidamente picados, e um ovo cru (um ovo por pessoa). Mexer bem, deixar o lume dar consistència à coisa, um pouco de pimenta moída na hora e talvez sal (talvez, porque em principio o sal já ia na água de cozer os camarões...). Bom proveito.

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