Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Pedro Rolo Duarte

26
Jan11

A vida aos gritos

(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman)

 

Sou muito sensível ao ruído. Sempre fui. Um aspirador no andar de cima consegue impedir-me de escrever, e aquele clássico aumento de som nos intervalos comerciais das televisões tira-me do sério. A vida nas cidades aniquilou qualquer espécie de sensibilidade em relação ao ruído: os automobilistas buzinam sem dó, ninguém repara no barulho insuportável que os empregados de café parecem ter gosto em fazer quando empilham chávenas e pires, não há prédio que se preze que não tenha um trolha a deitar uma parede abaixo. Não falando das ambulâncias do INEM sonhando que Lisboa é Nova Iorque. A cidade é, em si, um foco de ruído - e quem não lhe quer vestir a pele, é favor mudar para o campo…

Das várias vezes que tenho equacionado a hipótese de deixar de ser urbano, o ruído é responsável pela maioria. Porém, persisto em Lisboa – e acordo com o martelão de mais uma cozinha refeita de novo, e tenho o televisor no volume 1 para evitar a estridência da publicidade, e vivo de janelas fechadas porque os dias da avenida onde habito oscilam entre buzinas, autocarros, aviões e sirenes…

O ruído é seguramente um dos motivos pelos quais nunca, nem no tempo em que só recebíamos produções da Globo, vi telenovelas. Talvez minta: lembro-me de ter seguido espaçadamente o Dancing  Days, por causa do disco-sound, que coincidiu com o momento em que comecei a sair à noite. Mas não recordo sequer a trama. O que sei é que, boas ou más, portuguesas ou mexicanas, na TVI ou na SIC, não vejo telenovelas. Não é complexo nem preconceito – vejo coisas piores, como debates sobre futebol, e até espreito a Casa dos Segredos… -, mas tenho uma reacção epidérmica quando “sinto” uma novela no ar. Mudo de canal. Nesta rentrée, decidi perceber por que raio de fenómeno me repele aquele formato.

E descobri. Uma vez mais, é o ruído. O ruído e a energia. Nas novelas, qualquer que seja a sua origem, os personagens estão invariavelmente em uma de quatro situações: a chorar, aos gritos, aos beijos, ou às escondidas. Exceptuando os beijos – e mesmo esses, são quase sempre mal roubados… -, os restantes momentos implicam uma ou ambas as sensações: ruído, má energia.

Gritam e discutem como se não houvesse amanhã. Choram porque tudo lhes corre mal, mesmo quando aparentemente corre bem. Escondem porque mentem ou acham que lhes mentem. É tudo mau – mesmo que o final possa ser feliz. E é tudo incomodativo para ouvidos sensíveis e cansados. Tive a sorte, na minha vida familiar e pessoal, de raras vezes ter convivido com gritos e discussões fora do tom. Talvez por isso, cresci com a ideia de que isso era coisa exclusiva das novelas da Globo. Quando percebi que também as ficções portuguesas seguiam o mesmo caminho, aceitei que o problema, por fim, era meu. Na verdade, as famílias disfuncionais, as traições, as deslealdades, a gritaria, a mentira, o desentendimento, não são mais nem menos do que a vida real, e as novelas limitaram-se a reproduzi-la. Também por isso, foram bem sucedidas – e é um facto que, à minha volta, mais recentemente, esse círculo de ruído e violência apertou e cresceu.

Mas foi preciso ter passado a barreira dos 40 anos para perceber que, afinal, a razão pela qual as novelas são vistas por toda a gente é a mais simples de todas: elas são iguais à vida de toda a gente - e o que não é igual, é sonho do que possa vir a ser, ou medo daquilo em que se possa tornar. Com jeitinho, um dia destes estou sentado em frente ao televisor a vê-los ao gritos.

Com o som do televisor no volume mínimo. Posso suportar tudo – mas o ruído, o ruído vai continuar a ser objecto estranho. Não consigo viver aos gritos.

11 comentários

Comentar post

Blog da semana

Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.

Uma boa frase

Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Mais comentários e ideias

pedro.roloduarte@sapo.pt

Seguir

Arquivo

  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2016
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2015
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2014
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2013
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2012
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2011
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2010
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2009
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2008
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2007
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D