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Pedro Rolo Duarte

29
Mar11

Uma guerra perdida

(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman)

 

Tenho a sorte de morar “encostado” a duas boas livrarias da cidade. Compro jornais e revistas numa, compro livros em ambas, sem grande critério distintivo. Independentemente das necessidades ou das compras, costumo passear pelas duas lojas com metódica regularidade. Para passar o tempo ou, como gosta de dizer a minha mãe, “andar a flanar”.

Gosto especialmente de passar por ali nas épocas festivas ou especiais – no Natal, nas vésperas da Feira do Livro, nos dias que se sucedem ao anuncio do Prémio Nobel da Literatura. São momentos em que as livrarias ganham vida própria, pulsam como pessoas, e os livros parecem melhores. Nos últimos anos, porém, sinto os livreiros, nestes momentos mais fortes, inquietos - à procura de espaço para mais livros, tentando alimentar escaparates, sempre mais pequenos do que as encomendas. O espaço ganhou uma relevância inesperada.

Por mais de uma vez assisti, nos últimos meses, ao mesmo drama: empregados com livros empilhados entre a cintura e o pescoço tentam, sem sucesso, alinhar as novidades nos espaços disponíveis. Observar os seus movimentos é um exercício que deixa angustiado o espectador – e nem vale a pena dizer-vos que, nos tempos que correm, parte dos espaços disponíveis para os livros já não dependem dos livreiros, mas sim de quem os paga...

Ainda assim, o que vejo? Vejo livros novos morrerem em segundos, esmagados por mais um sucesso internacional de auto-ajuda; vejo desaparecer de cena um excelente livro de receitas antigas, substituído por uma livro idiota de receitas para homens que não sabem estrelar um ovo; vejo as crónicas de uma jornalista que nunca quis publicar crónicas ficar atrás do romance de um jornalista cujas crónicas os jornais deixaram de publicar. Vejo, enfim, a batalha campal dos editores, dos autores, do marketing, das vendas, entre eles, uns contra os outros, matando e morrendo sem dó nem piedade.

Acho que se trata, no fundo, de uma pequena guerra civil de palavras, autores, egos, editoras, negócios. Uma guerra com regras mas sem princípios. Uma guerra que em épocas mais radicais, como o Natal, ganha contornos dantescos – vale tudo, incluindo tirar olhos (isto é, tirar talentos para vender gadjets que fingem ser livros), vale até o peso do acaso ou da sorte num livro que cabe à justa naquele cantinho ainda livre. Mesmo sem merecer.

Não tenho autoridade para falar: os quatro livros que levam o meu nome e estiveram no mercado são, por junto, um jornal a fingir que é livro. Mas nem por isso deixo de ser sensível a este mercado e a este conflito entre espaço físico e relevância literária. Sem poder provar, tenho a certeza de que esta guerra produz mais injustiça do que justiça, deixa mais vítimas do que heróis. No fim, quando alguém se der ao trabalho de fazer o balanço, muitos bons livros foram mortos em combate, e muitos maus livros receberam condecorações. Nos intervalos, há livros que permanecem no teatro de guerra sem fazerem nada por isso – e outros, feridos de morte, tentam sem sucesso chegar à prateleira mais visível...

Se o mundo é injusto e vive uma guerra sem cartel, o universo dos livros é uma boa reprodução, à escala, da guerra civil (que fazemos sempre de conta que não existe...). Eu, leitor confesso, assisto às guerras sazonais e espero sempre que ganhe o melhor. Mas a vida já me ensinou que não é assim – na guerra, perdemos todos. Sempre. Nas livrarias onde se digladiam obras de toda a espécie, não há ideologia nem religião que vença o mercado. É uma guerra perdida, apenas.

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