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Pedro Rolo Duarte

27
Set13

O fim da idade

(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman. A deste mês já está aí nas bancas...)

 

Quando tomei consciência de mim, a idade era um posto. Era uma referência. Era um sinal de stop. A idade que nos distinguia dos mais velhos obrigava a respeito e deferência. A idade que nos afastava dos mais novos fazia de nós gente. Dizia-se “no tempo dos nossos avós”. A expressão “no meu tempo” era desejada logo que a adolescência chegava. Lembro-me de ter 18 anos e dizer aos meus pais, à mesa de jantar, qualquer coisa como “no meu tempo havia muito menos variedade de Legos do que há hoje” – e eles riam-se a bom rir (repetindo e imitando-me: “no meu tempo….”), como se fosse um enorme disparate. E era. O meu tempo era curto, não era ainda tempo.

Agora, aproximo-me a passos largos do meio século de vida e sim, já posso dizer “no meu tempo” sem provocar gargalhada geral. Já posso contar histórias às sobrinhas, ao meu filho, aos filhos da minha namorada, sem parecer ridícula a distância temporal. Porém, algo mudou entretanto. Não chega, numa roda de amigos, ou à miudagem reunida na praia, dizer “no meu tempo”, ou contar uma história começada por “tinha eu 24 anos…”. Menos ainda ousar um “há quinze anos”… Eles não fazem contas. Acima de tudo, eles não fazem ideia…

Essa forma de contar o tempo, tendo a idade como referência, é coisa morta e enterrada. Hoje, é preciso sempre acrescentar “sendo certo que naquele tempo não havia telemóvel”, ou “era o tempo do fax”. Já ouvi pessoas medirem o tempo com um “antes do iPhone” ou do iPod. “Quando a Vodafone era Telecel” parece rebuscado, mas identifica claramente um momento. Já ninguém fala de tabaco sem recordar o tempo em que se fumava em todo o lado. Lembrar o tempo em que só havia RTP, ou o “antes e depois” da Coca-cola em Portugal (Chegou em 1977…) equivale ao que, no passado, significava o antes e o depois da morte dos avós.

Um desencontro entre duas pessoas sem o complemento directo – “no tempo em que não havia telemóvel” – é como descrever uma viagem a Madrid no século XIII sem sublinhar a ausência de automóveis, aviões e comboios.

Estas novas referências acabaram de vez com a idade. Que idade tenho? Não interessa nada. Indiferente se são 30 ou 70 anos – interessa se vivi o tempo do telefone fixo ou os filmes em VHS, se me lembro dos autocarros verdes de dois andares ou o ecrã de TV com o “letreiro” “pedimos desculpa pela interrupção, o programa segue dentro de momentos”. Os anos passam, nós passamos com eles e vamo-nos habituando a estas novas medidas. Os mais novos deliram com a ideia de um tempo sem smartphones com Internet e Facebook, como se isso fosse pré-histórico, mas na verdade eles estão a determinar uma nova imagem do calendário: o tempo é mais rápido do que a nossa capacidade de o viver. Ou pelo menos absorver.

Nesta voracidade, perde-se o pormenor, o cuidado e algum romantismo. Ganha-se capacidade de viver a vida em multiplataforma e não perder o essencial do que já de si é, como dizia o escritor, a “espuma dos dias”. Talvez também nos fuja um pouco o pé para o chinelo no respeito pelos mais velhos. E desperdiçar o sábio que está dentro de cada velho é como deitar ao rio exemplares únicos (e sem “backup”...) de enciclopédias.

Pergunto-me se nessa diferença entre o tempo em que a medida era a idade e este em que a medida é um “antes e depois” de qualquer coisa, se perde o encanto do amanhecer e do anoitecer, o mistério de uma ruga que tem uma história, os nossos mais queridos familiares e amigos como marcos de referência? A ideia de ter acabado essa unidade de medida pode ser um delírio feliz. Mas também pode ser, tristemente, o fim de um tempo. O tempo em que cada um de nós contava para o outro. Sem resposta para a dúvida, cedo e rendo-me: o tempo dirá.

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Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.

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