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Pedro Rolo Duarte

29
Jun14

Um olhar

Um dos dramas e deslumbres e maravilhas da mente humana é ser, por mais que a queiram formatar, individual. Cada pessoa tem a sua. O mais semelhante dos nossos semelhantes é diferente de nós. A alma gémea não é gémea senão na aparência.
Ainda assim, não conseguimos deixar de estabelecer paralelos entre situações idênticas, mesmo que vividas por pessoas diferentes.
A minha mãe tem 83 anos e perdeu um filho há oito. Assisti e vivi tudo por dentro, claro. E jamais esquecerei o olhar da minha mãe - que não sei adjectivar nem classificar -, na véspera do enterro do meu irmão. Algures entre o desaparecido e o perdido, sem rumo e sem sentido, parado num tempo que nunca existiu, foi um olhar que me marcou de tal maneira que tenho a certeza de que foi responsável por uma das mais profundas mudanças que senti na vida e me trouxe até aos dias de hoje.
Oito anos passados, não consigo que esse olhar me abandone desde que tomei conhecimento do que está a viver a Judite de Sousa. Amiga, cúmplice de passados comuns, e uma mãe absolutamente dedicada. Só quem a conhece sabe a mãe que era. Mesmo quem a conhece não pode sonhar o que sente e sofre neste momento.
Não me larga esse olhar da minha mãe há oito anos - e o que aprendi com ele. E agora sinto, mesmo não podendo sentir o que a Judite sente. Talvez apenas consiga adivinhar o seu olhar.

28
Jun14

Sala de espera

(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman. A deste mês já está aí nas bancas, ainda quente...)

O casal, de mão dada, tenso, olhava a medo à sua volta. Olhava-me a medo, olhava a medo a rapariga que não parava de mexer no telemovel, e evitava olhar o casal homossexual que parecia aterrorizado pelas circunstâncias daquele improvável encontro numa mesma sala de espera.
Rosada, a rapariga encostava a cabeça no (seu) rapaz. Pareciam noivos ou recém-casados A sala fria, como todas as salas de espera de uma unidade de saúde, não tinha nada que amenizasse o ambiente. Nem a luz demasiado crua e branca, nem as cadeiras, coladas umas às outras, nem o que havia para descontrair - em vez de revistas cor de rosa, folhetos de toda a espécie. Maiores, mais pequenos, com bonecos ou fotografias, folhetos.
Estivemos juntos não mais de meia-hora - eu, o casal homossexual muito tenso, o casal heterossexual inquieto, e ainda a rapariga nova, muito magra, sempre agarrada ao telefone.
Não minto: também me agarrei ao telemóvel. Já escrevi que o smartphone é o melhor amigo das pessoas pontuais, que ocupam o tempo de espera consultando a meteorologia ou lendo jornais. Mas agora acrescento: o smartphone pode ser também o melhor amigo de quem está à espera de uma noticia que pode ser boa, ou má. A melhor ou a pior.
E era isso que eu e a rapariga muito magra fazíamos, ocupando o tempo no telefone com patetices, enquanto os dois casais sofriam em solidão aquela meia-hora de duvida e vida em aberto.
Abro a porta para o cenário: estava na sala de espera de um dos CAD (Centro de Acolhimento e Detecção de VIH), lugares onde, gratuita e confidencialmente, se fazem testes rápidos para detectar a infecção que pode conduzir à SIDA. Todas estas pessoas eram muito mais novas do que eu - que, além de mais velho, estava mais ou menos seguro (tanto quanto isso é possível…) sobre o resultado do teste que voluntariamente me propus fazer. Mas esta diferença não distingue o que se sente quando ali nos encontramos: a duvida sobre uma hipótese que, mesmo sendo hoje considerada uma “doença crónica”, nos deixa a vida suspensa, no limite condenada, seguramente condicionada.
Cada um de nós estava ali por razões distintas. Imaginei que o jovem casal quisesse certificar-se da sua condição antes de procriar; imaginei o casal homossexual nos primeiros dias de namoro, querendo sentir-se “livre de perigo”; imaginei a rapariga solitária alguns dias depois de um comportamento de risco irresistível (o amor é tantas vezes irresistível…).
E sei de mim, mais ou menos seguro da condição, mas ainda assim… Bom, não farei considerações sobre o tema.
Um a um, fomos chamados a uma psicóloga, que nos alertou sobre os perigos de uma má noticia inesperada, e que tentou perceber o que nos levava a querer passar por aquela provação. Depois, um a um, fomos ao teste com a enfermeira friamente simpática. E por fim, a tal meia-hora de espera pelo resultado.
Essa meia-hora é que conta. Vim para o pátio de Centro de Saúde fingir que estava ao telefone, para não denunciar a apreensão por aquela noite de há cinco anos, ou por um qualquer descuido idiota, e dei de caras com o casal homossexual, de mão dada, com a expressão mais angustiada deste mundo; mais à frente, a rapariga do telemóvel fumava cigarro sobre cigarro como se o mundo fosse acabar dali a nada. O casal recém-casado nem sequer saiu da sala de espera. Como se todos estivéssemos num tribunal sem juiz, nem advogado, nem testemunhas. Na mais terrível solidão.
Fui o primeiro a ser chamado à psicóloga (a mesma de há bocado). Sem alegria ou tristeza, ou seja, sem expressão, lá me disse que o resultado era negativo e que a “janela” que tudo pode estragar estava fora de hipótese. Estava livre. Claro que me senti aliviado.
Mas, ao sair do gabinete da psicóloga, passando pela sala de espera, vi aqueles pares de olhos angustiados, pousados sobre mim, e senti uma terrível responsabilidade. Sorri e disse: “está tudo bem!”. Não sei por que raio me saiu tamanha estupidez - estando bem comigo, podia não estar com eles -, mas talvez tenha sentido, naquele momento de nudez e vazio, uma cumplicidade com aquelas tão diferentes pessoas e expectativas.
Percebi, por fim, que uma sala de espera onde se encontram esperanças e desesperanças de toda a espécie, não é mais do que um espaço onde deliberadamente abdicamos da individualidade para sermos, por uma vez, todos iguais. Na saúde somos extraordinários. Na doença somos o mais comum dos indivíduos. Nem pensei nisso quando decidi despistar o HIV - mas foi assim que me senti naquele bocado de vida. Saí. Mas vai ser difícil esquecer.

24
Jun14

Anos de menos

Faria hoje anos. Anos de menos para o tanto mais que merecia ter vivido. E nós com ele. Com o Bernardo Sassetti.

Lindo, este momento da minha amiga Ana Lacerda sob o piano do Bernardo.

 

22
Jun14

Sobre a ignorância

O actor principal do filme “O Homem Duplicado” - a partir do livro homónimo de José Saramago - confessa, em entrevista ao Expresso, que não leu o livro que deu origem ao filme. E fê-lo consciente e deliberadamente. Ele acha que um actor não tem de saber tudo, e que em muitos casos é melhor saber apenas o mínimo indispensável.
Fiquei a pensar no que ele disse e tentei adaptar à minha comum existência. Todos os dias leio jornais, oiço rádio, vejo noticias nas televisões. E agora, a mais de meio da vida, e afastado do jornalismo diário, começo a interrogar-me sobre se não seria melhor NÃO SABER algumas coisas. Não sei se muitas ou poucas, talvez nem saiba bem escolher aquelas que preferia ignorar.
Mas dou razão ao actor no que à vida real diz respeito: há informação que seria preferível não saber, não tomar conhecimento, passar ao lado.
A ignorância traz mais vezes felicidade do que se pensa, começo agora a perceber. Tarde demais, receio.

18
Jun14

As “ondas apressadas”



Ontem, pai-galo, fui ver o meu filho na sua nova função de nadador-salvador da Praia Grande. Acho que nem ele tem bem a noção do orgulho que é, para mim, vê-lo equipado e atento num dos lugares essenciais da minha vida. A praia que foi a casa de férias, parque infantil, centro de reconhecimento de potenciais namoradas, e jardim de efectivo namoro, desde que nasci até aos 21 anos... Vê-lo ali foi como se passasse o testemunho à pessoa que melhor podia honrar os dias (tão) felizes que vivi na Praia Grande. E teria tanto mais para dizer...

Bom, fechemos a parte lamecha da coisa...

Passei um bocado da tarde com ele, num dia calmo e sem sobressaltos, apesar daquele mar impor respeito - mesmo tratando-se do mar que conheço como se fosse, e é, amigo para a vida.
Lembrei-me de um poema de Pessoa (na verdade, de Ricardo Reis), que a memória não conseguiu reconstruir. À noite, em casa, não descansei enquanto não o encontrei.
A net tem este lado deslumbrante - e eis o bocado que me ocorreu ontem, pela tarde, enquanto via o António Maria olhar, serenamente, mas com dedicada atenção, o mar da Praia Grande e quem nele ousava mergulhar…

"Uma após uma as ondas apressadas
Enrolam o seu verde movimento
Enchiam a alva espuma
No moreno das praias.

Uma após uma as nuvens vagarosas
Rasgam o seu redondo movimento
E o sol aquece o espaço
Do ar entre as nuvens escassas.

Indiferente a mim e eu a ela,
A natureza deste dia calmo
Furta pouco ao meu senso
De se esvair o tempo.

Só uma vaga pena inconsequente
Pára um momento à porta da minha alma
E após fitar-me um pouco
Passa, a sorrir de nada."

12
Jun14

Notícias do pântano

A notícia, seca e fria, era assim: “A Controlinveste Conteúdos, empresa detentora dos títulos DN, JN, TSF e O JOGO, entre outros, anunciou hoje um processo de redução de efectivos no total de 160 postos de trabalho, soma de um despedimento coletivo de 140 colaboradores e de um conjunto de rescisões amigáveis que abrangem mais 20”.
Há muito que se falava desta possibilidade, há muito que se percebera que seriam os trabalhadores a pagar o preço de uma gestão laça, muitas vezes incompetente, na maioria dos casos apenas ignorante. Quando falo de gestão falo também, sem medo, na direcção dos principais títulos do grupo. A crise não justifica nem desculpa tudo.
Não desculpa, por exemplo, a descaracterização de um titulo como o Diário de Notícias, que deixou de ser jornal de referência para não ser nem isso nem o seu contrário. Popular? Tabloíde? Conforme os dias. Falo com conhecimento de causa. O DN foi o jornal a que estive ligado mais anos consecutivos: fui colaborador-estagiário, colunista, director (do DNA, que criei de raiz), e cheguei a pertencer a uma direcção do jornal - ininterruptamente, ao longo de 20 anos, de 1986 (comecei por escrever sobre musica no suplemento de sábado) a 2006 (quando o DNA acabou), fui um leal colaborador daquelas páginas, e vibrei com a remodelação de 1996, que disparou as vendas do jornal para números acima dos 60000, e ambição para mais, como voltei a acreditar na mudança que tentámos fazer em 2005, na direcção de Miguel Coutinho e Raul Vaz, a que tive o privilégio de pertencer. O DN sempre foi um jornal velho que se soube renovar - e esse foi também o segredo da sua longevidade -, e agora tornou-se um jornal velho que não se renovou nem soube continuar a envelhecer. Perdeu-se algures entra a ilusão de agradar a todos e o desespero de vendas abaixo dos 15000 exemplares diários.
Uma coisa é a crise da imprensa e o fim anunciado dos jornais diários em papel - sobre isso, não tenho grandes duvidas. Outra coisa é não olhar de frente o olho do furacão e tentar dar a volta, “errando cada vez melhor” (como está a fazer o “Expresso” ou o “Público”, mesmo que sem o sucesso esperado, pelo menos imediato), reinventando o negócio, usando o papel na sua dimensão exclusiva e o online como megafone de marcas e produtos, ou fazendo opções de fundo radicais e consistentes, mesmo que arriscadas, como sempre defendi.
O DN teve  oportunidade, integrado num grupo de razoável dimensão, de voltar a renovar-se sem perder a idade - mas não soube fazê-lo. Ou não quis. Ou pura e simplesmente desistiu. Os leitores sabem ler estes estados de alma - talvez por isso, desistiram também.
Este anuncio de despedimentos em massa tem uma mensagem implícita: os títulos podem permanecer no mercado, mas tudo vai mudar- dos conteúdos ao negócio, da forma de produzir jornalismo aos objectivos a alcançar -, e não se adivinha uma estratégia ou uma ideia que nos faça acreditar que a mudança melhorará o quadro geral. Sem ideias, sem pessoas, só com máquinas de calcular, podem fazer-se sabonetes - mas não se fazem jornais e revistas e rádios e televisões.
Se falo apenas do DN é porque me toca no coração, porque vivi naquele jornal alguns dos momentos mais fortes da minha vida profissional (e até pessoal: falhei uma única vez a entrega de uma crónica, no dia em que o meu filho nasceu…), e porque me doeu a forma como perdeu identidade e personalidade nos últimos anos.
Como de costume nestes casos, os 160 despedidos são o clássico mexilhão que se lixa. Aqueles que nestes anos contribuíram para delapidar o património material e imaterial do DN flutuam tranquilamente no pântano que criaram.

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Blog da semana

Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.

Uma boa frase

Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira

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