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Pedro Rolo Duarte

19
Jun11

O frigorifico avariado

(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman)

A mãe de uma amiga minha costuma dizer, sempre que se fala de relações amorosas – em geral, do fim de mais uma relação… -, que a diferença entre o tempo dela e o tempo actual “é como com os frigoríficos: antigamente, quando o frigorifico avariava, mandava-se arranjar. Agora, deita-se fora o avariado e compra-se um frigorífico novo…”. A mãe da minha amiga tem razão, mas a verdade é que as gerações mais novas não nasceram ensinadas nem cultivaram estilos diferentes por iniciativa própria: foram educadas pelos pais, sejam eles mais velhos, como os da minha amiga, ou mais novos, como eu próprio.

Falo por mim, e falo de coisas muito diferentes: pertenço a uma geração que cresceu a ouvir falar da “conquista do direito ao divórcio”, da “conquista do prazer”, e de mais uma mão cheia de frases-feitas do Maio de 1968. Vi-me envolvido no tempo da comunicação global, instantânea, automática. Ainda me lembro do elogio médico da margarina por oposição ao azeite, e das campanhas de publicidade na TV apelando ao consumo de ovos. Até a cruzada contra o tabagismo só começou já eu fumava mais de um maço por dia. Nem preciso de recordar que a SIDA “nasceu” no pleno da minha vida adulta.

O que é que eu quero dizer com tudo isto? Quero dizer que estas últimas décadas são tão paradoxais, tão contraditórias, tão estupidamente conflituosas entre si, e acima de tudo tão cheias de surpresas, que está pela hora da morte a capacidade de acreditar em muito mais do que no dia de hoje. Seguramente por isso, a tentação de trocar de frigorífico, sempre que ele avaria, é enorme. Nunca sabemos se amanhã não se descobre que o velho electrodoméstico provocava doenças letais…

E se me faltava mais qualquer coisinha para compor o quadro, eis que ele me chega sob a forma de uma reportagem na revista brasileira “Veja”. Tendo como ponto de partida uma série de equações matemáticas que serviram para perceber a possibilidade de vida noutros planetas, a revista fez um conjunto de operações aritméticas e concluiu que as possibilidades de se encontrar uma relação amorosa consistente via Internet é 42% superior à de encontrar a nossa cara-metade num bar ou numa festa…

Repare-se: o mesmo meio – a internet – que foi diabolizado como pasto para toda a espécie de pecados, mentiras e perigos no que às relações amorosas diz respeito, residência oficial de violadores e predadores sexuais, campo de férias de criminosos e solitários, é afinal a Meca do amor, o “lugar onde”. Sem gastar dinheiro em jantares ou copos, sem perder tempo em conversas ou olhares melosos no bar da esquina, o internauta percorre perfis em redes sociais e afere com 42% de “maior” rigor os pontos comuns com a potencial conquista. Feito o “casting”, trata-se agora, e apenas, de fazer cruzes na “check-list” e partir para o “encontro”. Real, de preferência. Leio e pasmo – não por achar que não faça sentido, mas porque a reportagem anula, mata sem dói nem piedade, e nem sequer recorda, anos e anos de maldição sobre a relação entre amor e internet, paixão e internet, namoro e internet. Agora, a nova ordem é outra: quer ser feliz no amor? Quer encontrar o parceiro da sua vida? Quer uma relação segura? Vá à net, aventure-se pelas redes sociais, pelos sites de busca do “par ideal”, e deixe-se mergulhar na felicidade…

E coma sardinhas, enquanto os dietistas não mudam de ideias e as colocam na lista dos prazeres proibidos. Abuse do azeite. Parece que o café também faz bem. Beba vinho tinto. E se o frigorifico avaria, já sabe: mande vir um novo.

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