Em crise (mas ainda a fazer de conta que o Governo não matou à traição o que restava da classe média)
(Crónica originalmente publicada na Lux Woman, há já dois meses, sobre tema aqui vagamente abordado... Ainda não sabia que o Governo pretendia asfixiar de vez a classe média. Trata-se certamente de uma medida pensada e inteligente, e caso haja duvidas, todo eu sou ironia, para não dizer lágrimas...)
Ora bem, vou também dar um contributo para a crise. É a palavra de ordem, a desculpa, a culpada, a substituta do atraso, do “agora não posso”, do “ligo-te para a semana”. Até nisso poupamos, são apenas cinco letras e está tudo explicado: crise. Devemos ser solidários, amigos, braço dado. Devemos fazer de conta que não percebemos que a crise, esta crise, tem menos a ver connosco, comuns trabalhadores e cidadãos, e mais a ver com “eles”, maus governantes, empresários ambiciosos e com poucos escrúpulos, especuladores que vivem do negócio do dinheiro disfarçados de “agências de rating”. Mas isso, diria um amigo, “são outros quinhentos”.
Para o caso, interessa que temos menos dinheiro e queremos ser felizes na mesma. É fácil desenhar o manual da poupança caseira, ou atirarmo-nos à máquina de calcular para ver onde se corta, mas confesso que me parece pouco estimulante – até porque, se formos rigorosos, podemos cortar tudo, excepto a alimentação, a saúde, a educação. O tecto, no limite, mesmo que arrendado...
No meu caso, procuro ser imaginativo e, entre outras medidas, parte da solução – ou do “esforço de crise”... - custou-me 25 euros. O preço aproximado do livro “The Flavour Thesaurus”, de Niki Segnit, autora de uma coluna sobre combinações de alimentos no jornal britânico The Times, e uma especialista de gastronomia (que até descobriu a sua vocação há poucos anos – ou seja, uma mulher que nasceu já na crise...). Ainda não está traduzido em português, mas tenhamos esperança.
Niki passou os últimos anos a estudar combinações de sabores e produtos, e o resultado desse estudo é um livro onde se responde às perguntas mais (ou menos...) óbvias: o bacon e o chocolate combinam? A avelã fica bem com a banana? E que tal ovos e caviar, como Sinatra e Ava Gardner terão demonstrado em filme clássico? Café e cardamomo têm algo em comum? E se for canela com figos? Quais são as ervas aromáticas mais adequadas ao peixe? A laranja e o açafrão são primos?
Organizado como um dicionário, o livro é um manual de economia caseira para quem gosta de cozinhar e arriscar, sem com isso criar desperdício. Evita o tortuoso caminho que vai da ideia ao prato, deixando para o cozinheiro apenas o que interessa: faz sentido? Já se fez? É bem combinado, é mal combinado? Vamos em frente.
Sei que esta ideia “contra a crise” contraria outra, bem mais interessante, que alimenta os optimistas: em tempos difíceis abrem-se espaços para as novas oportunidades, tudo se pode experimentar e viver. Com certeza que sim.
Mas quando se chega à cozinha, nos confrontamos com as compras feitas no supermercado, e pensamos naqueles a quem fazem falta os produtos que, apesar de tudo, podemos adquirir, há qualquer coisa de irracional que nos conduz a esta poupança. Não estragar. Não “deitar fora”, que é expressão de um tempo que acabou, porque já não há “fora”, há caixotes de lixo separado e com cores diferenciadas... Adiamos o tempo da experimentação e, com o auxílio deste precioso dicionário, podemos continuar a inovar na cozinha sem o peso-pesado do desperdício.
Além disso, podemos sempre sonhar com o dia em que possamos misturar ovos e caviar, porque esse será o dia em que teremos dinheiro para tão desmedida loucura.
Se gostamos de inovar e arriscar – eu gosto... -, vale a pena os 25 euros de um livro. Explica-nos a lógica da combinação de sabores e até nos conta histórias de um passado já experimentado. Deixa-nos um nadinha mais tranquilos. Porque a verdade é só uma: estamos todos no mesmo barco. E o barco parece persistir na ideia de ir ao fundo.