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Pedro Rolo Duarte

02
Dez11

O Miguel *

(Esta crónica foi escrita e publicada em Janeiro de 2007 na revista Lux Woman. Hoje, depois da semana que o Miguel viveu -  quem o lê no Público sabe do que falo -, fui buscá-la porque sim, porque claro que sim, porque quero ir comer cabrito ainda antes do Natal naquele sitio que no Verão tem sardinhas, e tudo o resto, até o chá. E as latas. E a Maria João vai estar.)

 

Ele já tinha falado sobre o que é estar perto da morte, e tinha falado do seu casamento feliz com a Maria João, e do prazer das pequenas coisas – cheiros, uma laranja, pão fresco... -, quando o jornalista lhe pergunta: “Certos críticos colocaram alguma reserva à tua ficção. Isso pesa alguma coisa?”. E ele: “Nada. Eu sou um escritor. Escrevo de tudo, da publicidade aos fados. Orgulho-me disso. Orgulho-me de poder escrever um recado à empregada em bom português”. Não contente, o jornalista insiste, como quem procura um final para aquele caminho, e pergunta-lhe se havia alguma crónica por escrever. E ele dá outra: “Então não? As crónicas da vida que me falta. Todas as crónicas até à crónica de estar à boca da morte”.

Confesso: aí caiu-me uma lágrima marota, resistente. E pensei: bolas, que sorte a minha ter um amigo antigo que tanto me ensinou, tanto e tão bom me fez ver, e que ainda hoje, mesmo através de uma entrevista de jornal, me ensina e explica o que ando eu a fazer neste mundo.

É que o Miguel tem toda a razão: a nossa vida, a dele, a minha, a de tantos outros, é escrever, escrever sempre e tentar sempre escrever bem, no recado à empregada ou na crónica, ou no projecto que se adia, ou...

Não vejo o Miguel há mais de um ano. Mas penso nele todos os dias – porque todos os dias, em algum momento, há algo que faço e que a ele se deve. Tenho amigos mais antigos, que amo na mesma e eternamente. Mas ao Miguel eu devo mais do que a amizade – devo a aprendizagem de coisas essenciais à vida e à profissão: a humildade, o reconhecimento de que não adianta levarmo-nos demasiado a sério, a capacidade de encaixe e de aguentar a critica. Se não fosse o Miguel eu teria deprimido quando um critico disse que eu era como um ovo – não tinha ponta por onde se pegasse... Por causa do Miguel não só consegui rir como fui capaz de falar com esse critico e apreciar o seu trabalho. Se não fosse o Miguel, o gin tónico que enfeita os meus finais de tarde era desenxabido sem 3 gotas de limão fresco. Se não fosse o Miguel eu continuava a beber wiskhy escocês e a ter vergonha de gostar muito da Simone. Não falando agora do Gambrinus, ou da comida japonesa quando ninguém por cá se abeirava dela. Se não fosse o Miguel, a forma como olho e penso o jornalismo continuaria hoje menos aberta e descomplexada. O Miguel é monárquico e conservador. Eu sou republicano e liberal. Ele é muito mais liberal do que diz, e eu sou muito mais conservador do que julgo.

É uma sorte ter um amigo assim. Uma sorte que me deu abertura de horizontes e a clara noção da diferença entre o dever, o prazer, a obrigação e o direito. Eu nunca tinha pensado que a maioria das coisas que faço, faço porque quero – e não porque devo. Eu não devo quase nada – eu posso, eu quero e faço, eu tenho prazer e vou, eu uso um direito e cumpro. Mas na vida ninguém “tem de”.

Sempre que um novo ano começa, eu penso que isto não pode continuar e que tenho de ver o Miguel mais vezes – pelo prazer de estar com ele e para continuar a conversa das últimas sardinhas que comemos na Boca do Inferno. Mas depois as coisas nunca seguem o curso que devem e acabo por vê-lo menos do que quero – porque também nisso o Miguel me ensinou que na amizade não há dividas nem cobranças nem direitos e deveres. Há apenas o que tem de haver – e que está lá muito além da presença física ou dos encontros marcados na agenda. Está, por exemplo, no livro que me surpreende no Outono. Ou no telefonema em que sonhamos mais uma revista. Ou nesta entrevista onde ele às tantas diz: “Sou muito feliz. Desde que casei, então, sou felicíssimo”. Era só isso que eu queria saber e ouvir. O resto, bom, a vida encarrega-se do resto.

 

* Esteves Cardoso

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