A “narrativa” do discurso e do grito
Um dia, há bem mais de dez anos, discutia o valor da liberdade com um modesto trabalhador que aproveitava o momento para desfazer na ideia de democracia. Às tantas, já irritado, ele colocou-me a seguinte questão:
- De que me serve a liberdade de me exprimir se não tenho dinheiro para comer o suficiente que me dê energia para usar essa liberdade?
É nesta pergunta que fico a pensar sempre que vejo mais um governante impedido de falar por causa de uma manifestação espontânea (ou mesmo que o não seja...) de protesto. Discute-se a liberdade de expressão, mas pode também discutir-se o momento em que essa liberdade vale pouco face à miséria em que se vive.
Defendo a liberdade de expressão sem qualquer espécie de limitação – mas também por isso, não me incomoda especialmente que se fale mais alto do que fala um governante num colóquio ou numa conferência. O governante fala quando quiser, onde quiser, e tem sempre um microfone ao dispor – já o povo, que eu saiba, não dispõe de assessores nem empresas de comunicação. Fala só quando lhe permitem, nas manifs do costume. Fala quando a “narrativa” politica o deixa falar.
Neste quadro, parece-me que estão bem uns para os outros. Os governantes a fazerem conferências como se o país estivesse tranquilo, em paz, e na mais pura concórdia, e os que se lhes opõem a lembrar, em regime de permanência, que assim não é, que assim não estamos.