Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Pedro Rolo Duarte

26
Jul13

O deve e o haver

(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman. A deste mês saiu agora mesmo...)

 

- Tudo bem?, perguntei.

- Tudo bem?!, respondeu ela. Achas mesmo que está tudo bem? O c***** do meu ex-marido, por acaso teu amigo, bla bla bla, fiquei desempregada e bla bla bla, a tua amiguinha X é a maior f*** da p*** que existe, tudo bem? Olha, digo-te mais...

No meio da rua, num dos raros dias de sol da Primavera apenas anunciada, senti-me subitamente um saco de boxe golpeado de um lado e do outro, sem intervalos, sem ok’s nem ko’s. Apenas um desgraçado saco de boxe. Quando o desabafo destemperado chegou ao fim, estava arrasado. Cansado. Doente. A minha interlocutora sorriu e deixou um “temos de tomar um café um dia destes...”. E seguiu o seu caminho. Eu fiquei a tentar recuperar os sentidos, mergulhado em má energia, em agressividade gratuita, e a interrogar-me sobre por que raio teria sido eu a vítima de uma onda de indignação que não me dizia respeito.

É uma reflexão que se vai arrastando atrás de mim: a das pessoas que nos rodeiam, familiares ou amigos, ou mesmo amores, e se distinguem, ao longo dos anos, entre as que dão e recebem, as que apenas dão, as que nos sugam sem dó nem piedade, as que nos usam (e na desilusão, perdemos...). De todas, as piores talvez sejam estas, as que fazem de nós o saco de boxe das suas existências e depois, limpas de toda a revolta e indignação que lhes vai na alma, seguem o seu caminho (não, como cantava o Rui Veloso, “com a merda na algibeira”, mas deixando, sem pena nem remorso, a dita dentro de nós).

Perdemos demasiado tempo com quem nos é tão pouco. E o verbo não está errado: os amigos são, do verbo ser. Não estão, do verbo estar. Os amigos dão e recebem, livremente, mas não cobram nem devem. Não é nosso amigo quem nos usa como saco de boxe, deixando-nos no colo a carga negativa de uma vida, e depois vira costas leve e ligeiramente. É nosso amigo quem usa e abusa de nós num desabafo, não numa descarga; numa conversa, não num discurso; numa partilha, não num imposto. Estou a escrever lugares-comuns, sei-o bem, mas tenho notado, em conversas, que vivemos tempos radicais – amar e odiar, querer tudo ou nada, extremar o discurso nas relações (em todas as relações) como se caminhássemos, em guerra, para o juízo final. Acredito que a crise, a preocupação que vive em cada um de nós, empole reacções e sentimentos – mas não alinho nessa maré viva que tudo confunde e baralha. E leva quando a maré baixa.

Já vi amigos desavindos por causa de um emprego, ou de uma divergência política - e isso fez-me regressar a 1975, quando vi os meus pais perderem amigos pela mais estúpida das razões: desacordo ideológico quanto ao rumo de Portugal. A minha mãe recorda com frequência algumas dessas amizades perdidas – ou pelo menos congeladas – na sequência da revolução de 1974. Quando conta esses episódios, não consigo deixar de pensar no ridículo que pode constituir o corte de relações entre amigos de sempre porque uns optaram pela esquerda, e outros pela direita. Visto à distância, é tão absurdo que se torna incompreensível.

Na verdade, vejo nos dias que correm sintomas de uma estranha repetição dos factos. Das asneiras. E noto que esses sintomas decorrem dessa estranha mania que faz de muitos de nós sacos de boxes das frustrações, infelicidades, depressões alheias. Na confusão, perde-se a dimensão do que está em causa. Somos amigos, ou irmãos, ou mesmo namorados – mas não somos sacos de boxe nem fardos de palha para alimentar animais.

Vivemos momentos estranhos. Tão estranhos que releio esta crónica e vejo nela ideias e princípios que, de tão óbvios, julgava arredados de uma página de revista. E no entanto...

1 comentário

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.

Blog da semana

Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.

Uma boa frase

Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Mais comentários e ideias

pedro.roloduarte@sapo.pt

Seguir

Arquivo

  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2016
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2015
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2014
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2013
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2012
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2011
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2010
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2009
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2008
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2007
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D