Um momento com José Sócrates
A entrevista de José Sócrates a Clara Ferreira Alves é um documento exemplar no que ao jornalismo e à politica dizem respeito. Para o jornalismo, é um trabalho de excepção – independente sem ser neutro, empenhado sem ser militante, claro sem ser simplório. Clara Ferreira Alves no seu melhor.
Do ponto de vista politico, e para lá do conteúdo, revela a hipocrisia da politica no seu melhor: o mesmo homem cuja linguagem era enquadrada pela condição institucional, não deixa de soltar a franga quando se sente livre desses empecilhos “menores”.
Na verdade, ao reconhecer aquela linguagem – onde o calão ganha lugar de destaque -, lembrei-me de um episódio que vivi com José Sócrates e que definiu para todo o sempre o meu olhar sobre aquele homem. Passou-se a meio dos anos 90 (como corrige e bem um leitor, em 1993), dois anos antes de Guterres ganhar as suas primeiras eleições. Quis o destino que uma amiga comum a mim e a Sócrates concorresse a uma das principais camaras do país. Dado que um canal de TV (nova correcção do leitor: terá sido a RTP ou a SIC...) decidira fazer alguns debates entre candidatos, e a nossa amiga era uma das escolhidas, pediu a ambos que a ajudassem a preparar esses debates. Na qualidade de amigos da candidata, fizemo-los com gosto e conhecemo-nos. José Sócrates era deputado. Tratávamo-nos por tu, chegámos a jantar uma vez no velho Petit de Algés. Falávamos de politica mas também da vida de cada um – e depois lá íamos ajudar a nossa amiga a ganhar a sua camara. E ganhou mesmo.
Dois anos depois desses encontros, Guterres vencia as eleições e José Sócrates era nomeado secretário de estado do ambiente. No aniversário da nossa amiga comum, em pleno clima de vitória socialista, vi-me numa festa onde se confundia a comemoração da aniversariante com o regresso do PS ao poder. À medida que “progredia” no espaço onde a festa decorria, fui cumprimentando as pessoas que conhecia. Algumas tinham sido entretanto transformadas em ministros, o próprio António Guterres estava presente já como primeiro-ministro (por empossar, salvo erro). Falei a todos os que conhecia como falava antes da vitória socialista – e assim me falaram todos também, por tu ou por você, com maior ou menor formalidade, conforme o grau de intimidade.
Por fim, encontrei José Sócrates, que ainda uns tempos antes me tratava por tu. Ao ver-me, o (agora) secretário de estado mostrou alguma surpresa e disse:
- Olá, como está? Você, por aqui?
Senti um frio na espinha e a mais terrível sensação de incómodo. O tu tinha dado lugar ao você, e a proximidade substituída pela indiferente distância. Para mim, nesse dia, percebi quem era José Sócrates.
Lembrei-me desses tempos quando li o Expresso e o vi livre e de língua solta. Será que, se o encontrar na rua um dia destes, me volta a tratar por tu?