Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Pedro Rolo Duarte

21
Abr17

E uma vacina contra a ignorância?

(Ontem, na plataforma Sapo24)

 O ser humano tem este dom extraordinário de usar pesos e medidas diferentes para situações semelhantes, dando sentido à expressão “albardar o burro à vontade do dono”, e com isso justificando qualquer espécie de atitude. Até mesmo apanhar sarampo, doença que julgava erradicada do nosso horizonte.

Pelos vistos, não está. E o anormal numero de casos que se estão a registar no nosso país, com a primeira vítima a despertar, lamentavelmente, o pior juiz que há dentro de nós, veio reabrir o debate sobre a vacinação e a sua potencial obrigatoriedade. Há um movimento crescente de cidadãos que, por razões diversas – filosóficas, politicas, éticas, ou apenas vitimado pelo vírus da “teoria da conspiração” -, acha que pode não vacinar os seus filhos. Essas pessoas alegam, evidentemente, a liberdade individual sobre o corpo, e sobre o corpo dos filhos, e alimentam as mais diversas teses sobre a industria farmacêutica e a sua sede de lucro. Chegam a perguntar, como vi numa rede social, quanto ganham dessas empresas aqueles que, como eu, defendem a vacinação... Um alucinado adepto de futebol não faria melhor em relação aos árbitros. Dado que é recomendada mas não é obrigatória, nada acontece a estas pessoas – mesmo que, por falta de vacina, os seus filhos contraiam sarampo e contagiem o vizinho do lado.

Gritam esses anti-vacinas: “Se o vizinho estiver vacinado, não tem de temer o meu filho!”. Errado. Ainda que a cobertura da vacinação seja superior aos 95% que fazem com que se considere o país “imune”, há pessoas que, mesmo vacinadas, podem apanhar sarampo. Ou seja: o que parecia ser uma decisão individual cujas consequências não saiam de casa do inconsciente de serviço, mexe afinal com a vida do vizinho. Deixa, portanto, de ser um problema pessoal, para ganhar domínio colectivo. E é aqui que estamos.

Aceitam-se obrigatoriedades como o cinto de segurança, a proibição do fumo nos espaços públicos; obrigam-se os proprietários de veículos a inspecioná-los de tempos a tempos; os condutores são observados por médicos, a partir dos 50 anos, para poderem guiar; os restaurantes são vigiados pela ASAE e os produtos têm prazos de validade. Aceitamos leis e mais leis, obrigações e mais obrigações – muitas delas pouco ou nada sustentáveis, algumas transformadas em taxas e impostos (já repararam que pagamos um imposto para circular e outro para termos os veículos estacionados? E somos obrigados...). Mas depois debate-se uma questão grave de saúde publica e “ai, jesus”, a liberdade individual está acima do mais elementar bom senso. Dois pesos, duas medidas, para situações em que a nossa atitude pode prejudicar a vida do vizinho do lado ou do incauto com quem nos cruzamos.

Leio na revista “Visão” que, nos anos 90, um estudo de um tal Andrew Wakefield tentou demonstrar a relação entre autismo e as vacinas contra o sarampo, a papeira e a rubéola. Já se provou que era falso, uma fraude, uma invenção. Mas como não há vacina contra a ignorância, continuamos dependentes do supremo “achismo” de quem resiste a vacinar os filhos. Até ao dia.

Confesso a minha perplexidade, ou talvez apenas ingenuidade: não julgava possível que em pleno século XXI estivéssemos a debater os prós e os contras de um medicamento que salvou milhões de vidas no século XX. Não me passaria pela cabeça ler a notícia de uma morte – e não ando à procura de culpados, apenas reconheço o choque e sinto a incredulidade. Não me ocorreria sequer a dúvida sobre esta matéria.

Mas agora percebo por que se reabre o debate. É que falta mesmo uma última vacina. E não é contra o sarampo.

1 comentário

Comentar post

Blog da semana

Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.

Uma boa frase

Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Mais comentários e ideias

pedro.roloduarte@sapo.pt

Seguir

Arquivo

  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2016
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2015
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2014
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2013
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2012
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2011
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2010
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2009
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2008
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2007
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D