Os espelhos de uma face
O nome de Miguel Torga nunca se descolará do “Reino Maravilhoso”: “O nome de Transmontano, que quer dizer filho de Trás-os-Montes, pois assim se chama o Reino Maravilhoso de que vos falei”. O escritor deixou-nos o elogio de toda aquela região perdida a norte do norte, do povo que a vive, do povo que a sustem. Quando tive de fazer uma reportagem sobre Trás-os-Montes – ou melhor, sobre a contradição entre a ideia “moderna” das regiões centro, norte e sul, por oposição às províncias que sempre demarcaram Portugal… -, fui com estas palavras melodiosas no ouvido… O homem de Trás-os-Montes feito monumento de consistência e vida, um chouriço e um pão à espera do visitante, uma porta aberta a quem chega: “Ufanos da alma que herdaram, querem-na sempre lavada, nem que seja com sangue. A lendária franqueza que vem nos livros, é deles, realmente. Mas radica na mesma força interior que, levada à cegueira da exaltação, pode chegar ao assassínio. Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde:
- Entre quem é!”.
Lá fui eu pelo norte mais norte de Portugal, entrando em aldeias pequenas e desertas, onde só ouvia portas fecharem-se e gente a virar-me as costas. Torga estava a fantasiar, pois nunca ouvi um “entre quem é” - ou eu não era. Torga é intocável, resta a segunda hipótese: eu não era.
Lembro-me da fotógrafa Inês Gonçalves pretender, numa aldeia deserta, tirar uma fotografia a uma mulher de preto, que levava uma dúzia de ovos ao colo, e ela baixar a cara e gritar:
- Que é lá isso? Não fiz crime, não fiz crime, para que é a fotografia?
Quando voltei escrevi o que vi, o que senti, o jornal onde publiquei transformou-se subitamente numa caixa de correio de transmontanos irritados, incomodados, ofendidos: de António Barreto ao saudoso Hermínio Monteiro, fui chamado de louro ariano a reaccionário, sem apelo nem agravo, e houve mesmo quem sugerisse que me retirassem a carteira profissional e me escovassem para longe…
Passaram muitos anos, muitas luas, e já voltei a Trás-os-Montes, e já conheci mais lugares e pessoas do que nessa época sonhara poder visitar e conhecer.
E acho que aprendi a lição desses tempos taxativos em que declarei que minhotos e alentejanos eram notáveis portugueses, enquanto beirões, algarvios e transmontanos deixavam dúvidas e alimentavam mitos. Aprendi que o sorriso que se dá é, na maioria dos casos, o sorriso que se recebe. Que a mão que se estende tem uma mão estendida do outro lado. E que quando se olha sem sorriso, recebe-se olhar sem sorriso.
Ou seja: hospitalidade é, como cantou António Variações, “dar e receber”. E essa ideia carece, a um tempo, de humildade e nobreza. As chaves para uma vida mais rica. E para a simpatia eterna daqueles com quem nos cruzamos na vida. Comigo foi assim. E aprendi a lição. Talvez, afinal, Miguel Torga tivesse razão: as portas que se fecharam foram aquelas que na verdade eu não soube abrir.