Tirem-me daqui!
Todos os anos, quando chega o Natal, vejo pessoas à minha volta organizarem-se para “ir à terra” – e interrogo-me sempre da mesma forma: se eu quiser ir à terra, vou onde? À Avenida de Roma? À Praça de Alvalade? À Avenida de Igreja? A minha terra fica onde? Talvez naquele cantinho de terra que havia no “recreio” do Externato Santa Joana à Princesa, ou no descampado das traseiras da Escola Preparatória Eugénio dos Santos onde o Bob queria plantar umas coisas interessantes que tinha trazido de Moçambique. Pode ficar numa rua do Bairro Alto ou na esplanada dos Meninos do Rio.
A conclusão é estupidamente igual, todos os anos: não tenho terra. A minha terra é feita de calçada portuguesa e alcatrão, sinais de trânsito que me limitam os movimentos, espaço que a ninguém pertence - mas, por ser de todos, me é cobrado ao minuto. A minha terra é triste como a cor cinzenta nos domingos de Agosto e no dia de Natal, e finge ser feliz nos outros dias do ano.
Ao longo dos anos fui adoptando terras – do Penedo à Zambujeira, fiz “o meu percurso”, como diria um político em forma… -, tentando empurrar com a barriga a realidade, mas na verdade nunca senti que lhes pertencesse. Por mais que o cheiro da terra molhada, depois de chover, me comova, e por mais que me deixe em êxtase a madeira a arder numa lareira, no fim do período de convívio com a terra adoptada, a crueza da verdade sobrepunha-se sempre à intenção: fechava-me no carro e voltava a Lisboa para continuar a vida.
Uau, que bom é ser urbano, sofisticado e cosmopolita: em vez de ar, respiro tubos de escape ou reforço a vida asséptica com vidros duplos nas janelas; em vez de tempo, vivo sem tempo; em vez de campo à minha volta, tenho jardins e “espaços verdes” organizados para me saciarem a sede de terra e verde. Não tenho estradas secundárias nem caminhos de cabras, mas posso deliciar-me com filas de trânsito e buracos que rebentam pneus. Tenho restaurantes de todos os estilos – mas não vejo o verdadeiro amarelo de um ovo desde que o meu filho apanhava ovos da Dona Ana no Sacas. Como se não bastasse, acordo todos os dias com a afinada orquestra de trolhas a falar alto, um rádio aos berros e martelos em lento e doloroso martelar numa obra interminável no andar de cima. Ser urbano é o máximo, não é?
Não é. Ser urbano é ser o pior que achamos que é ser provinciano quando dizemos de alguém que é provinciano: parecer que se é o que se não é, que se tem o que se não tem, e viver de palas nos olhos achando que um Centro Comercial é o apogeu da ocupação de tempos livres, um frango é produzido num supermercado e o leite nasce nos pacotes. Um provinciano pode ser saloio – mas um urbano consegue ser ainda pior, porque vive a fazer de conta. Faz de conta que não é saloio, nem infeliz, nem triste.
No fundo, é tudo mais básico e simples: por detrás de um Homem da cidade, esconde-se sempre um provinciano. Mais próximo ou mais distante. Mais antigo ou mais recente. E é por isso que o provinciano que há em mim procura desesperadamente a raiz e grita: tirem-me daqui! Mas ninguém me ouve. E no próximo Natal lá irei à terra, algures entre a Livraria Barata e o Hospital Julio de Matos…