Nós, Bravos
No entanto, todos os Verões, sempre passados na “casa dos cestos” do Penedo (no tempo em que o Penedo não sonhava que um dia iria ser moda…), estremecia essa minha convicção sobre o jornalismo. Ocorria geralmente entre Julho e Agosto, e a dúvida tinha associada dois sons: a sirene dos Bombeiros Voluntários de Colares e o eco dos passos do Chico correndo ladeira abaixo a meio da noite. Eu acordava com o som da sirene, 3 vezes, ouvia os passos apressados do nosso vizinho, e sabia o resto: era fogo.
Fogo na Serra de Sintra era obra para gente brava – não apenas bombeiros, como o Chico, mas todos os que se sentiam capazes de enfrentar o inimigo comum. Com ramos de árvores, à pá, com baldes de água, como fosse. Aprendi nesse tempo que nem sempre o caos é inimigo da perfeição – porque, na verdade, na eminência do desastre, tudo o que se faça para o evitar pode mesmo ajudar a evitar…
Escrito isto nos dias que correm receio que o mais mediano serviço de Protecção Civil me mande prender por incitar à anarquia e conseguir observar o mundo do ponto de vista do caos – mas eu vi muito fogo na Serra de Sintra extinguir-se por efeito da confusão generalizada, e muito poucos pela cientificidade do estudo do vento e do grau de humidade.
Pior (ou melhor): o Chico e outros Chicos que corriam ladeira abaixo e acima para enfrentar o fogo na Serra, eram os mesmos que dedicavam, em cada ano, um dia das suas vidas correndo à frente de um touro. Levavam marradas e riam. Iam parar ao hospital e riam. Ficavam meios apanhados da cabeça, e por isso riam. A “Festa do Boi” – em rigor, “Festa em Honra do Divino Espírito Santo” – tinha o dia fatal da sua “fama” quando um pesado mastodonte era “lidado” à corda pelas ruas do Penedo e acabava cozinhado num caldeirão que servia os pobres da região em modo “jardineira”. Eu não gostava de ver o sangue do boi correr pelas bermas das ruas do Penedo, nem gostava da ideia do animal ser bombo da festa – mas quem corria à frente dele, quem lhe gritava “olá” e fazia rajadas de palavrões (sempre um ponto a favor, para nós, os putos…), eram justamente os mesmos que, nas horas difíceis, lá estavam à frente do fogo. E não me custou a perceber que tudo fazia parte de um mesmo pacote.
Há anos que a festa não se faz - nem a correspondente polémica sobre a sua legalidade -, mas o que fica na memória são aquelas caras alucinadas, loucas, fortes, que eram exactamente as mesmas que encaravam o fogo de frente, ou que se lançavam na estrada nas insuportáveis XF-17 para as bebedeiras descomunais nos bailes de Verão.
Ainda hoje não sei. Mas sei que quando a palavra “Bravo” me aparece à frente, é deles que me lembro: do Chico, do Sacristão, do Totobola, dos Gémeos, do V5, e de mais uns tantos cujas alcunhas agora me escapam. Os bravos lá do Penedo, quando o Penedo era pouco mais do que uma aldeia de bravos com um coreto no meio.