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Pedro Rolo Duarte

22
Dez07

Não queremos todos os presentes que nos querem dar

O meu Natal tem uma história banal. A rima é despropositada, mas não vou alterar a frase: o meu Natal tem uma história banal. Numa família com escassas ligações à religião – ou que se calhar se escondem por detrás das aparências pragmáticas, e nunca as consigo ver -, o Natal é a ocasião e a oportunidade para compensarmos as ausências, para actualizarmos as referências e os olhares, e termos um bocadinho de tempo para estarmos uns com os outros, e todos em simultâneo.
Na casa de bonecas que era o Penedo, com o meu pai à volta da lareira e eu a enfrentar o frio de Dezembro de bicicleta em riste; na casa do Campo Grande, onde os presentes se escondiam nos armários para os embrulhos não serem “violados” por mim e pela minha irmã; depois, à vez, no Bairro de São Miguel, na Boavista, na Quinta do Lambert, de novo no Campo Grande. O tempo e as condições construíram e desconstruíram natais de todas as cores - mais sentidos, mais interiores, mais festivos. Conforme os anos, conforme os acontecimentos de cada ano. Mas sempre com o mesmo quadro inicial: voltarmos a olhar uns para os outros. Pensarmos uns nos outros e no que cada um gostaria de viver e sentir e ter. Fecharmo-nos sobre o que somos – abrindo-nos entre nós.
É assim que todos os anos “adivinho” o Natal – apesar da história banal, sei que os factos determinam o ambiente. Na nossa família – em todas, presumo -, o Natal cresce quando chega uma criança – como esmorece um bocadinho quando parte alguém. Ninguém resiste à alegria de uma criança quando ajuda a compor a árvore ou o presépio, ou quando rasga desalmadamente um embrulho. Mas não ignoramos, entre os mais velhos, a falta que nos faz quem não está. Nessa medida, o Natal acaba por constituir um momento de confronto e luta – entre o melhor que a quadra tem e a memória que não nos deixa viver tranquilamente com a falta, a ausência, o luto. É um conflito de sentimentos, felizmente sempre vencido pelas crianças, que nos obrigam a renascer todos os dias.
Não consigo, no entanto, deixar de pensar neste conjunto de banalidades sem lhe acrescentar a voz avisada de alguém que aqui há tempos, falando sobre as relações amorosas, me dizia: “cada pessoa que passa pela nossa vida deixa-nos um presente cá dentro. Está embrulhado. Quando menos se espera, desembrulha-se e revela-se. Às vezes é um trauma, outras vezes uma flor. Às vezes acrescenta-nos um ponto, outras vezes retira-nos tudo”. É uma grande verdade com a qual nem sempre contamos. As relações morrem, as pessoas desaparecem da nossa vista, e na aparência tudo fica resolvido e em paz. Mas repentinamente o tal presentinho que nos deixaram dá sinal de vida, desembrulha-se, mostra-se e marca posição. Não há impunidades nem páginas em branco quando se sente. Quando se vive. Lembro-me sempre de uma frase do meu amigo Miguel Esteves Cardoso: “mal por mal, mais vale ser bom”. Quando queremos ser bons e conseguimos, o presente que deixamos nos outros é doce e bom. Mas a vida prega-nos partidas vezes demais.
E não é preciso ser Natal para ver um mau presente dar sinal de vida. Deixando-nos sem norte, ou à procura de outro caminho. No balanço que estas épocas do ano sempre convocam, há presentes indesejados que nos servem de bandeja – e para os quais a única solução, antídoto, medicamento, é mesmo voltar ao começo desta conversa: o Natal pode ter uma história banal. Mas é nessa história, uns anos mais sofrida do que noutros, que está a paz que procuramos todo o ano. Porque voltamos a olhar uns para os outros e, nesse instante de absoluta certeza, os presentes que outros deixaram cá dentro e trazem recheio amargo não conseguem desembrulhar-se. São devolvidos à procedência. E a vida, por instantes, parece feita de novo à nossa medida. À medida da família e dos amigos, que é a massa de que se faz o pão de todos os dias.
 
(Ao sábado, reedições. Texto publicado na Lux Woman, um destes natais passados...)

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