Voar como o Sr. Abílio
Crónica publicada hoje na revista do "i", "Nós, Rurais"... Continuam as reclamações de que jornal e/ourevista não chegam a muitos pontos de venda (incluindo em Lisboa...), reclamações para revista@ionline.pt ou geral@ionline.pt ...
Passei a sala principal do “Café Pinto”, o corredor que dava acesso ao pátio traseiro, subi umas escadas e a Dona Luísa, ao entrarmos numa cozinha misturada com varanda-entretanto-marquise, olhou para o Sr. Abílio, sentado numa cadeira a olhar o vazio, e disse assim:
- Pois ali está ele, entregue aos seus pensamentos.
Dona Luísa queria que eu ditasse sentença sobre o seu marido anestesiado, porque eu era um miúdo dotado que já tinha dado à Dona Olímpia explicações suficientes que lhe permitiram tirar a quarta classe, e daí a carta de condução. Mas, aos 12 anos, de psicologia percebia o mesmo que percebo hoje, aos 45. Nada.
Bom. Quem ali estava entregue aos seus pensamentos era o Sr. Abílio, o mais habilidoso condutor de carros de burros do Penedo e arredores, o homem que garantia que o “Café Pinto” era o sinal vital da aldeia, no televisor a preto e branco ou nos matraquilhos cá fora, nas cartas para a sueca ou na malha lá atrás. E aquele Sr. Abílio era, citando os Gato Fedorento, “um animal como a galinha, não podia estar bem; tinha asas mas não voava…”
Foi no café do Sr. Albino que soube que o francês - com quem organizava os Jogos Olímpicos do Penedo com medalhas feitas com caricas de garrafas -, roubava galinhas e limões para consumo individual e de família.
Foi no café do Sr. Albino que percebi que a ida do homem à Lua era desenho animado – e pela primeira vez o meu pai me surpreendeu, ao dizer que sim, que era tudo mentira, tudo animação televisiva. O meu pai trabalhava para a RTP e aquela gente acreditou. E cá fora ele riu, e rimos, e ainda hoje lembramos, entre os que ficaram, o corolário da história, que era o Sr. Abílio a contar o seu momento de horror no alto de uma “esgalha de uma árvore”, quando uma rabanada de vento o fez temer pela vida e ele percebeu, por fim, que nem os aviões voavam bem nem o homem chegava à Lua com aquela meridiana facilidade.
Na verdade, o Sr. Abílio “estava entregue aos seus pensamentos” porque um médico lhe notou excessiva agressividade e tendências pouco simpáticas em relação à raça sua semelhante - e vai daí, deu-lhe um potente calmante que o punha nas nuvens, bem mais flutuantes do que a esgalha da árvore que o fez duvidar da aventura humana.
Aqui chegado, eu terei comentado com a Dona Luísa algo como “a vida é mesmo assim”, e ela terá respondido: “o que é preciso é saudinha”.
E fomos às nossas vidas. Até aos dias de hoje, persisto em ser este falso rural que quer o campo com as luzes da cidade, quer na cidade o silêncio que só há no campo, e nem sabe dar conselhos decentes a quem se confronta com doenças urbanas.
Anos volvidos, no lugar do Sr. Abilio está outro qualquer Abílio – com a mesma delicadeza e profissionalismo, entregue ou não aos seus pensamentos, já sem burro mas certamente “montado” numa Toyota Hiace ou numa Hiunday a suaves prestações.
Anos volvidos, também mantive a ruralidade limitada aos fins-de-semana, ao cheiro a lareira, e às saudades dos matraquilhos no café do Sr. Abílio. Mas sempre que me perguntam, não minto: saudades do cheiro do campo, das palavras ditas no campo, do cheiro das lareiras e fogões de chão que há no campo. Acima de tudo, saudades de sonhar com um tempo que sempre me pareceu maior e melhor no campo. Mesmo quando tinha a certeza de ser igual. Há tempos que não vale a pena comparar.