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Pedro Rolo Duarte

05
Jan10

Todos diferentes, todos diferentes

Começou por ser o penteado e a roupa. Quando dei por mim adolescente, era este o primeiro sinal que distinguia as pessoas, que separava classes e géneros e estilos: o penteado, a roupa. Em alguns casos, o perfume também contava – tive até uma amiga de Verão, na Praia Grande, que era conhecida como a “Sofia Johnson’s”, porque despejava frascos da água-de-colónia infantil dessa marca sobre si própria...

Nesses tempos longínquos, havia palavras que também identificavam origens – enterro ou funeral, vermelho ou encarnado, prenda ou presente – e crescia a absurda dicotomia entre um beijinho e dois beijinhos. Ainda hoje dou um beijinho a umas, dois a outras, e fico na dúvida com muitas pessoas...

Os anos passaram. Muita coisa mudou. A roupa e o penteado democratizaram-se de tal maneira que é praticamente impossível usar esse critério para distinguir géneros. Ter um visual próprio deixou de ser extravagância, ganhou estatuto de personalidade. E bem.

O problema é que nem por isso se quebraram barreiras definidas por aparências. A vida virtual encarregou-se de criar os novos códigos – e hoje são bem claros, como nos anos 80 eram as roupas e os penteados.

Se num qualquer Facebook desta vida alguém se me dirigir perguntando “kdo tas lvr p kfee?”, reconheço claramente de onde pode vir tal pergunta, e sei que há anos de distancia entre mim e quem me interpela. Se numa mensagem de telemóvel o texto chegar ao pormenor do “Desculpa incomodar-te a esta hora, certamente estás a almoçar...”, também estou certo de poder adivinhar a origem.

O toque de um telemóvel é hoje um sinal exterior de personalidade – até quando é banal, o toque permite-nos aferir da negligência do dono do aparelho face às tecnologias ou, simplesmente, da sua irrelevância no mundo... Há pouco tempo, descobri uma afinidade improvável com uma colega do jornal onde trabalho – o toque de telemóvel dela é uma das canções de sempre da minha vida. Ela não sabe de tal facto – nem tenho intimidade suficiente para lhe dizer... -, mas ouvir o seu telefone tocar é mais ou menos como encontrar mais alguém para quem o “Até ao Fim”, do Vergílio Ferreira, seja o livro de uma vida. São escolhas improváveis, incomuns, e um toque de telemóvel com Sakamoto e David Sylvian pertence certamente à mesma categoria...

Mas há mais. O ecrã de um computador é um diário, onde a existência se inscreve sob a forma de “wallpapers”, sons, pastas e fotografias – e a forma como se escreve um mail constitui em si um livro de estilo do seu autor. Há pessoas que começam pelo clássico “Olá, bom dia”, mas também há quem vá directo ao assunto sem sequer um cumprimento, há quem não responda ou quem presuma que aquele é o único mail que recebemos num dia.

Na ingenuidade de quem viu a chegada do computador como o começo de uma uniformização da vida, achava que a evolução da tecnologia nos tornaria cada vez mais iguais, cada vez mais indistintos. Desatento, nem me apercebi que o simples facto de, logo nas primeiras versões do “Word”, podermos escolher escrever em “courier”, “areal” ou “times new roman”, era apenas o sinal da revolução que aí vinha.

E veio. Foi tudo ao contrário. Com as roupas e os penteados havia apenas os freaks, os betos, os punks e mais um ou dois subgrupos.

Agora, cá para mim, nem há grupos: há uma espécie de corrente contínua de rios, afluentes e ribeiras que se juntam e afastam, confluem e se desfazem, para desaguar todas no mesmo mar. O da imensa liberdade de se exibir o mais próximo possível do que se é. E eu gosto de pensar que é mesmo assim.

 

Crónica publicada na última edição da revista Lux Woman. Daqui a dias sai uma nova...

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