O cheiro do tempo
Todos os anos, quando caem as primeiras chuvas - e se porventura estou no campo -, o cheiro da terra molhada, misturado com o cheiro doce de uma lareira acesa, devolve-me à infância na Serra de Sintra, e pela memória passam-me imagens e momentos de um tempo que ficou lá, onde tinha de ficar. Mas volta, inesperadamente, pela via menos óbvia, a do olfacto. A memória, nestes casos, não tem tempo para apagar a lembrança – porque ela persiste, ano após ano, naquelas circunstâncias.
É mesmo assim: para mim, é o cheiro. Mais do que a saudade, que tenho de pessoas e de momentos, a nostalgia é palavra que associo a cheiros que passaram e voaram, nunca mais voltaram. Ou voltaram por instantes, geralmente de forma inesperada, e me deixaram nesse torpor cansado de quem revive o que já viveu.
Há tempos vivi de novo esse click, esse disparo acidental que o olfacto provoca. Para o perceber, vale a pena recuar a essa infância em Sintra. Na aldeia onde passava férias e fins-de-semana, a Dona Olímpia, ali mesmo ao lado, criava porcos e galinhas e coelhos, alimentados com as rações da época: erva, cascas de fruta, arroz. Para os porcos, a dieta incluía um prato que eu reconhecia à distância pelo cheiro: cascas de batata cozidas. Dona Olímpia ia juntando as batatas de consumo caseiro, guardava as cascas numas latas grandes, e depois cozia tudo numa fogueira ao ar livre. O cheiro das cascas cozidas era peculiar: algo como batata cozida envelhecida e oxidada, se é possível imaginar o cheiro destas palavras juntas...
Era incómodo, mas não era absolutamente repugnante – talvez porque fizesse parte dos cheiros da terra, como o cheiro a resina de pinheiro, ou a limões frescos junto aos limoeiros, ou aquela mistura da caruma com as folhas secas de eucalipto.
Os anos passaram e eu não voltei àquelas paragens e nunca mais senti o cheiro das cascas de batatas cozidas – mesmo quando as cozo com casca, mesmo quando são “a murro” para acompanhar o bacalhau assado. As batatas que chegam às cidades já não têm essa casca com esse cheiro que, para mim, ficou lá na infância e na adolescência na Serra de Sintra.
Há uns meses, então, a nostalgia disparou sob a forma de um cheiro. Desse cheiro. Ocorreu quando comprei, num mercado de rua, batatas de cultura biológica, daquelas escuras, com a casca suja de terra. Pus algumas a cozer com a casca. A água ganhou cor – coisa que nunca acontece... – e repentina, inesperada e brutalmente, senti o cheiro das cascas de batata cozida da minha infância no Penedo. Exactamente aquele cheiro ocre – ou seria acre? -, ligeiramente envelhecido, oxidado. Como se a minha cabeça fosse um armário dos anos, abriu-se a gaveta do tempo e tudo me envolveu de novo: os amigos daquele tempo, as brincadeiras de Verão e de Inverno, o tanque onde tomávamos banho, o caminho das pedras, a quinta do alto, as guerras de ameixas podres.
Foi quando me apercebi que já não me lembrava daquele cheiro, já não tinha na memória a sua existência - mas estava lá e despertou naquele instante. Foi também quando confirmei que andamos a comer amostras do nosso passado, primos químicos dos legumes da infância, produtos “limpos”, “higienizados”, “formatados”. Ou seja: sem origem.
Porque, na origem, as batatas tinham aquele cheiro, as maçãs às vezes tinham bicho, e os tomates tinham menos água e mais sabor. A minha nostalgia está no cheiro – mas quando se estende, espalha-se ao comprido.