Um verbo que nunca acaba
Gosto muito da expressão “viajar na maionese”. Gosto da imagem de quem perde o controlo sobre o corpo e se deixa ir ao sabor do chão que pisa. Neste caso, escorregadio como uma maionese. Imagino aqueles escorregas de água intermináveis onde os filhos ousam ser radicais e os pais fazem de conta que são filhos. Imagino texturas suaves, macias, delicadas. Tudo não passa do domínio da imaginação.
Cá em baixo, no mundo real, “viajar na maionese” traduz algo como estar fora do mundo, passar ao lado, espalhar-se ao comprido sem sequer dar por isso. Não parece bom – mas não é isso que fazemos tantas vezes sem que venha daí mal ao mundo? Não é esse um dos segredos da felicidade nacional, uma espécie de viagem em permanência na maionese dos problemas, sempre à procura de uma saída airosa e de preferência indolor...
Viajar é, nessa medida, um dos verbos mais dinâmicos da nossa existência. Viaja-se sem sair do mesmo lugar, e nessa aparente contradição entre ficar e partir podem convocar-se mil ideias de partida e de chegada. Fazemos todos a “última viagem”, ou a “viagem das nossas vidas”. Viajamos porque nos obrigam, por prazer, correndo, fugindo. Para descansar. Para nos cansarmos. Em paz. Em esforço. Por amor. Ou em nome do ódio. O verbo é usado na nobreza e felicidade de uma descoberta ou na terrível condenação final. Uma passagem pelas crónicas de viagem assinadas hoje por Filipa Martins, Cláudia Köver e João Maria Condeixa mostra-nos esse lado tortuoso e inesperado de um verbo que associamos ao prazer e à felicidade - e que até parece irradiar luz.
Mas que luz irradia uma viagem para a morte? Onde fica o “glamour” de quem viaja para se refugiar? Como evitar associar o verbo à diáspora do povo hebreu desde sempre (e, pelos vistos, para sempre...)? Como explicar nos dias de hoje uma viagem para a tortura?
“Viajar! Perder países!/ Ser outro constantemente,/ Por a alma não ter raízes/ De viver de ver somente!” – Pessoa escrevia assim e falava da “ausência de ter um fim” para considerar que “Viajar assim é viagem”. A raiz é o ponto zero da viagem – ter ou não ter, querer manter ou querer descobrir, fugir da raiz ou procurá-la até ao fim dos dias. É o confronto connosco e com a nossa existência – ou a fuga deliberada, tantas vezes desesperada, a esse mesmo encontro.
Na dinâmica dos significados do verbo, da sua assertividade, do seu significado mais profundo, encontro riqueza e sabedoria. Os sábios levam-nos a viajar sem saírem da sua sala de estar - e mesmo quando parecem perdidos no caminho, encontram a saída quando menos esperamos. Aqueles que viajam na imaginação não são menos viajantes do que os caminhantes que desbravam o mundo.
Viajam na maionese? Talvez. Mas a verdade é mesmo essa: “viajar na maionese” não deixa de ser viajar. Mesmo que nos deixe invariavelmente no chão. Sem saber o que fazer. Ou sabendo menos do que antes sabíamos. A dúvida também é o começo de uma viagem. Talvez a melhor de todas elas.