Na roda do destino
(Crónica da revista do i deste sábado, Nós Jogadores)
Estou a ler a entrevista de Margarida Marante à jornalista Cândida Santos Silva, na revista Única da semana passada, e reparo que ela começa por lançar uma ideia que depois repete várias vezes ao longo da conversa: “A nossa vida define-se muito pelos bons e maus encontros”. Sempre que quer explicar mudanças na vida, recorre a esta espécie de jogo de sorte e azar que são os encontros - no limite, também os desencontros – e assim deixa uma margem generosa para a reflexão de quem lê. Marante podia bem ser um case study da raça humana – não tanto por ela, que tem vivido um pouco o que todos vivemos, porventura de forma mais intensa e radical, mas por aqueles que dela se aproximaram e afastaram conforme os seus momentos, as suas vitórias e derrotas, os altos e baixos de uma vida. Diz: “Isso é dos livros (...) Nos momentos maus há sempre pessoas que se afastam. Mas há outras que permanecem e são essas que dividem as águas”.
A ideia de glória e fracasso, de vitória e derrota, associo-a sempre a algo próximo do jogo. Como se a vida fosse efectivamente um desafio, e cada uma das nossas decisões fosse a aposta seguinte. Determinamos, com as escolhas individuais e o trabalho, uma percentagem de probabilidades de vitória muito segura. Mas essa vitória é sempre uma soma de circunstâncias, de que a sorte é certamente uma delas. Às vezes decisiva, outras vezes apenas o empurrão que faltava para fazer brilhar o nosso esforço. Nesta relação de forças, a ideia de jogo faz todo o sentido – e nessa medida, somos todos jogadores, como o percurso de Margarida Marante acaba por mostrar.
Não tive com Margarida Marante uma relação próxima – pelo contrário, razões diversas alimentaram até um distanciamento acentuado -, por isso nem me atrevo a usar o seu exemplo para lá das banalidades de uma crónica. Mas ao ler a entrevista, e ao pensar nesta edição, acabei por ir à procura de um verso de uma canção que pairou sobre parte da minha adolescência e aqui cai como uma luva. Trata-se do fado que Sérgio Godinho escreveu para a banda sonora do filme “Kilas, o Mau da Fita”, de José Fonseca e Costa. Não tenho o disco, mas a voz de Lia Gama ecoa claramente à minha volta: “E na roda desta vida/ nunca se sabe o que se nos depara/ e os que ainda andam na mó de cima/ têm que saber que a roda não pára/ e fatalmente o fim se aproxima/ a vida não pára”.
Cresci com esta imagem da roda que não pára, da roda que quando sobe é seguro que mais tarde descerá, e com a convicção de que não adianta sermos taxativos nos momentos de glória – porque nos que se seguem a taxatividade esfuma-se mais depressa do que a “nuvem passageira” da canção.
A vida é felizmente muito mais do que um jogo. Nem por isso deixa de obedecer a códigos, lógicas e sequências que se assemelham aos jogos que deixam tantos de cabeça à roda, viciados e dependentes, e outros indiferentes, como se nem sequer existisse a tentação. No jogo, pertenço ao grupo dos indiferentes – mas na vida, há jogos e regras de jogos que me deixam muitas vezes com a cabeça à roda. E a cantar como a Lia Gama, olhando para trás ou lendo a entrevista da jornalista: “Foi num velho cinema de reprise/ que eu revi a minha história/ a memória é uma armadilha/ quanto mais solta mais se ensarilha// E na roda do destino/ nunca se sabe o que se nos depara/ e os que ainda andam na mó de cima/ têm que saber que a roda não pára/ e fatalmente o fim se aproxima/ a vida não pára”.