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Pedro Rolo Duarte

29
Dez07

O tempo que temos

É talvez a frase mais irritante dos tempos modernos: «não tenho tempo para nada». Ouvimo-la diariamente, até à exaustão, parece um eco absurdo que se passeia pelos nossos dias como uma daquelas moscas moles de Verão. Toda a gente diz que não tem tempo, toda a gente se desculpa com a falta de tempo, o tempo escasseia mais do que a vida. O tempo é uma merda, em resumo. Ou a falta dele. Ou o jeito que nos dá a desculpa do tempo.
São três da manhã e estou a começar agora a escrever. Atrasado. Sem tempo. «Não tenho tempo para nada». Não tenho? Quem disse que não tenho? Por que estou agora a começar a escrever e não, como era suposto, a acabar de escrever? Porque me faltou o tempo?
Observo o dia que passou, o tempo «que gastei». Trabalhei, comprei um candeeiro, almocei uma sanduíche, bebi um chá e conversei com uma amiga ao fim do dia, tive um jantar em casa da Adriana, fui ver o pátio forrado a azulejos da Maria João e voltei para casa. Não tive tempo para nada? Não, tive tempo para o que quis, organizei e distribui o tempo em função dos meus interesses, da minha vontade e, vá lá, no limite, de um inesperado final de dia. Houve um momento inesperado, é verdade, mas eu aceitei-o. Não foi falta de tempo – foi outro tempo, foi o meu modo de organizar o tempo. Ninguém tem nada com isso – mas eu não tenho o direito de dizer que me faltou o tempo.
O tempo é a desculpa dos tempos modernos – falta-nos tempo para os amigos, para a família, para aquele projecto que ficou na gaveta, para organizar as fotografias, «para nós», para ler, para escrever, para telefonar, para comer, para sair, para entrar, para ver, para estudar. O que nos falta de tempo sobra-nos onde? Em quê?
É absurda a ideia, é irritante a desculpa. Nós temos, como na novela, «todo o tempo do mundo» - o problema é pequeno e simples: gastamo-lo com o que mais queremos ou precisamos, e naturalmente que não nos sobra mais para aquilo que efectivamente dispensamos mas não temos coragem para assumir que deixamos de lado.
Incomoda-me a eterna escusa do tempo por ser injusta para com o bem mais precioso da nossa vida. O tempo não para de passar, nem se cansa de andar à nossa volta, e é um conceito nobre e uma palavra bela. O tempo inspira os poetas, os escritores, sobre ele há ensaios e imagens, o tempo domina e é dominado, tem o poder de avançar sem pedir licença e jamais recuar. O tempo não volta para trás, como a canção pedia.
Como se pode usar um bem desta natureza para desculpar as opções que tomamos? Se são três da manhã e me falta tempo para escrever, isso deve-se ao tempo que decidi tomar para uma palavra, um beijo, um abraço, ou apenas um olhar pausado numa montra. Eu não «o perdi» - eu ganho-o no momento em que corro ao seu lado, que o uso, que me aproveito dele para o meu prazer, a minha felicidade, ou apenas o corrente uso diário. Um «compasso de espera» pode ser a solução, um olhar prolongado pode ser o futuro, um abraço longo pode ser a saída. O tempo é extraordinário – isto quer dizer que, por não ser ordinário, não deve ser usado como argumento para as nossas faltas, ausências, falhas.
Passa das quatro da manhã e eu não dei o meu tempo por perdido. Ganhei o meu tempo usando-o como bem entendi, provavelmente melhor do que saberia julgar – o tempo o dirá. Escrevi 33 vezes a palavra tempo em menos de uma página de jornal. A relevância que ele tem é o número de vezes que perdi tempo (34...) a escrever o seu nome. É um nome belo, intenso e vivo. Não quero perder mais tempo (35...) com ele, mas gostava que soubessem que não me importo de o perder: é o melhor que tenho para dar. Numa palavra, num sorriso, num beijo. Ou numa crónica de jornal. Há tempo para tudo, até para o perdermos a pensar no que faríamos com ele se o tivéssemos de sobra.
 
Ao sábado, reedições. Publicado no DN, algures em 2002.
 

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