O astrólogo improvável
Quando a A me ligou a pedir o contacto de um astrólogo que conheço, julguei estar a ser vítima de um desses “apanhados” idiotas. Só podia ser brincadeira. O telefonema começou com as banalidades do costume. No entanto, notei na voz da A qualquer coisa diferente, alguma inquietação, até que por fim se chegou à frente: “Lembras-te de me teres falado num astrólogo que achaste muito sério e sensato?”. Claro que me lembrava – ainda que recordasse melhor o ar estupefacto que, então, a A fez quando lhe contei que o tinha consultado: “Tu?! Num astrólogo?! Porque é que todos os que se divorciam vão a um astrólogo?”. Passei à frente. “Pois, gostava de o consultar”, disse ela. Não resisti a um “Não posso acreditar!”, mas a entoação ficou a meio gás, como se eu próprio receasse comentar algo que, de tão grave, merecia respeito e recato. A A começou então a falar-me das dúvidas que tinha no trabalho, na vida, e que se sentia um pouco sem saber o que fazer. Disse tudo com o seu habitual pragmatismo – tão desarmante que quase achei normal que aquela rocha estivesse a denotar algum desgaste, bocadinhos de areia a formarem-se em volta...
Dei-lhe o contacto, desliguei o telefone e fiquei o resto do dia deitado no sofá: a A a consultar um astrólogo? O céu vai mesmo cair-nos em cima da cabeça?
Esclareçamos: a A é, de entre todas as minhas amigas, a mais prática e céptica. Não acredita em Deus nem no diabo, e para ela a vida reduz-se às evidências: se trabalhares, ganhas; se cuidares da saúde, não tens doenças; se não ligares demasiado ao filho que engole moedas de um cêntimo estás seguramente a torná-lo forte e imune à gripe das aves. Nunca leu um horóscopo de jornal. Tem uma carreira de sucesso, um casamento feliz, dois filhos...
Dá para imaginar, portanto, o que pode um amigo sentir com aquela súbita reviravolta. Súbita? Na realidade, a mudança não é assim tão repentina. A A está a chegar aos 40 anos. Como é uma mulher inteligente, no meio de todo o seu cepticismo percebeu que a passagem dos anos provoca mais dúvidas do que certezas. Que o óbvio tem nuances. Que por mais descontraídos sejamos, a vida encarrega-se de nos deixar perguntas sem resposta. E percebeu, acima de tudo, que a lucidez não significa recusa sistemática de tudo o que nos escapa – ou seja, que é bom abrir a janela e admitir que pode haver vida para lá do que o nosso olhar alcança.
Parece que a consulta não trouxe a A revelações surpreendentes nem desfez os nós que tem na vida. Mas o simples facto de me ter pedido o telefone do astrólogo, deixando vislumbrar a fragilidade de que somos todos feitos - e de, a seguir, ter mesmo “ousado” a consulta -, deu-me a certeza de que continua a ser a mulher inteligente que conheço. Só uma pessoa inteligente desafia a sua própria incredulidade.
Essa lição chegou aos 40 anos. Sem divórcios nem dramas de maior. Onde eu vi uma rocha desfazer-se, estava antes uma pessoa a mostrar vitalidade.
Ao sábado, reedito textos antigos. Este saiu na versão original, diferente desta, na revista Lux Woman, algures em 2006