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Pedro Rolo Duarte

31
Dez07

Uma espécie de desejo de ano novo

"A fúria da vida. Porque a vida é furiosa e só a morte é sossegada. Verifico-o muitas vezes, medito-o algumas dessas muitas. Hoje, por exemplo, a cidade é inimiga da vida, ou seja da Natureza, transformando-a num fortim de cimento. Mas a Natureza está sempre de atalaia, à espera do mínimo descuido para avançar. E se o descuido se prolonga, esmaga o fortim e submerge-o em floresta. Mas a cidade também está vigilante e mantém-na à distância do seu rancor. Em todo o caso, há descuidos mínimos em que não repara. E imediatamente a Natureza aproveita. E aproveita das formas mais incríveis. Ontem parei o carro no parque de estacionamento. E ao sair reparei que em toda a placa de cimento, densa e unida como ódio, havia uma fenda minúscula em que o ódio estalava. E logo, rompendo furiosa, uma haste de erva. Como viera para ali? Como farejara o sítio para se realizar no seu milagre? Não o soube, não o sei. Sei apenas do meu espanto ajoelhado perante aquela maravilha e da minha intensa alegria pelo triunfo da vida, mesmo sob a pata pesada de uma placa de cimento".
Vergílio Ferreira, Conta-corrente Nova série (Volume I)
30
Dez07

Uma má noticia para fechar o ano

Não tarda é dia 1 de Janeiro de 2008 e entra em vigor a tal lei sobre o tabaco. Ou sobre a mais tremenda das hipocrisias. Sem querer argumentar muito, apenas um facto: o dinheiro pago pelos fumadores por 16 de cada 20 cigarros que compram vai direitinho para o Estado. O mesmo Estado que impõe a lei que impede o fumo, e que faz imperar a ideia de que os custos de saúde associados ao tabaco são demasiado pesados para o SNS...
Pesados mesmo são os custos do Estado consigo próprio – isto é, a soma dos custos do funcionamento com o custo da incompetência e o custo da distribuição de tachos, tachinhos e panelas. Mas isso, embora também nos mate lentamente, não merece avisos nas portas das instituições respectivas.
Adiante.
Amanhã chega a nova lei. Eu deixei de fumar há ano e meio, depois de 30 anos de dependência. Fumava, em 2005, diariamente, três maços de Marlboro Lights . Os dias ainda hoje me pesam sem cigarros, e sonho com recaídas, e levo a mão ao bolso à procura do maço que entretanto não voltou. Não é fácil.
Tenho tanto orgulho no que fiz quanto medo de uma tentação – e esse medo é de tal forma verdadeiro que ouso afirmar que não voltarei a fumar justamente pelo receio de ser outra vez quem era antes de 4 de Abril de 2006. Não quero. Prefiro sofrer o meu bocado e continuar a ser, apenas, um fumador que, de livre vontade, se impediu de fumar.
Mas se é verdade que não quero voltar a fumar, quero menos ainda um país asséptico, hipócrita e absurdo, onde as Asaes , as leis contra o tabaco, o culto da aquacultura, a industrialização, o álcool sem álcool, o café sem café, e os comprimidos para o colesterol, tirem à vida o sabor, a graça, o risco, a escolha, ou como dizia o Vasco, a "pontuação de quem escreve".
No fundo, não quero que tirem bocados da vida à vida. Prefiro suportar o fumo mesmo não fumando.
Já fomos mais livres do que somos hoje. Mas o pior é ter de admitir que fomos também mais felizes. E fomos mesmo – morrendo, é claro.
… Mas - e essa é a má notícia que trago a todos - tudo indica que continuaremos a morrer em dado momento do caminho, mesmo com legislação em sentido contrário. E parece certo que isso também vai suceder aos que nunca fumaram nem beberam nem comem ovos estrelados e queijo da serra.
Uma má noticia para fechar o ano, eu sei. Mas cá fica.
29
Dez07

O tempo que temos

É talvez a frase mais irritante dos tempos modernos: «não tenho tempo para nada». Ouvimo-la diariamente, até à exaustão, parece um eco absurdo que se passeia pelos nossos dias como uma daquelas moscas moles de Verão. Toda a gente diz que não tem tempo, toda a gente se desculpa com a falta de tempo, o tempo escasseia mais do que a vida. O tempo é uma merda, em resumo. Ou a falta dele. Ou o jeito que nos dá a desculpa do tempo.
São três da manhã e estou a começar agora a escrever. Atrasado. Sem tempo. «Não tenho tempo para nada». Não tenho? Quem disse que não tenho? Por que estou agora a começar a escrever e não, como era suposto, a acabar de escrever? Porque me faltou o tempo?
Observo o dia que passou, o tempo «que gastei». Trabalhei, comprei um candeeiro, almocei uma sanduíche, bebi um chá e conversei com uma amiga ao fim do dia, tive um jantar em casa da Adriana, fui ver o pátio forrado a azulejos da Maria João e voltei para casa. Não tive tempo para nada? Não, tive tempo para o que quis, organizei e distribui o tempo em função dos meus interesses, da minha vontade e, vá lá, no limite, de um inesperado final de dia. Houve um momento inesperado, é verdade, mas eu aceitei-o. Não foi falta de tempo – foi outro tempo, foi o meu modo de organizar o tempo. Ninguém tem nada com isso – mas eu não tenho o direito de dizer que me faltou o tempo.
O tempo é a desculpa dos tempos modernos – falta-nos tempo para os amigos, para a família, para aquele projecto que ficou na gaveta, para organizar as fotografias, «para nós», para ler, para escrever, para telefonar, para comer, para sair, para entrar, para ver, para estudar. O que nos falta de tempo sobra-nos onde? Em quê?
É absurda a ideia, é irritante a desculpa. Nós temos, como na novela, «todo o tempo do mundo» - o problema é pequeno e simples: gastamo-lo com o que mais queremos ou precisamos, e naturalmente que não nos sobra mais para aquilo que efectivamente dispensamos mas não temos coragem para assumir que deixamos de lado.
Incomoda-me a eterna escusa do tempo por ser injusta para com o bem mais precioso da nossa vida. O tempo não para de passar, nem se cansa de andar à nossa volta, e é um conceito nobre e uma palavra bela. O tempo inspira os poetas, os escritores, sobre ele há ensaios e imagens, o tempo domina e é dominado, tem o poder de avançar sem pedir licença e jamais recuar. O tempo não volta para trás, como a canção pedia.
Como se pode usar um bem desta natureza para desculpar as opções que tomamos? Se são três da manhã e me falta tempo para escrever, isso deve-se ao tempo que decidi tomar para uma palavra, um beijo, um abraço, ou apenas um olhar pausado numa montra. Eu não «o perdi» - eu ganho-o no momento em que corro ao seu lado, que o uso, que me aproveito dele para o meu prazer, a minha felicidade, ou apenas o corrente uso diário. Um «compasso de espera» pode ser a solução, um olhar prolongado pode ser o futuro, um abraço longo pode ser a saída. O tempo é extraordinário – isto quer dizer que, por não ser ordinário, não deve ser usado como argumento para as nossas faltas, ausências, falhas.
Passa das quatro da manhã e eu não dei o meu tempo por perdido. Ganhei o meu tempo usando-o como bem entendi, provavelmente melhor do que saberia julgar – o tempo o dirá. Escrevi 33 vezes a palavra tempo em menos de uma página de jornal. A relevância que ele tem é o número de vezes que perdi tempo (34...) a escrever o seu nome. É um nome belo, intenso e vivo. Não quero perder mais tempo (35...) com ele, mas gostava que soubessem que não me importo de o perder: é o melhor que tenho para dar. Numa palavra, num sorriso, num beijo. Ou numa crónica de jornal. Há tempo para tudo, até para o perdermos a pensar no que faríamos com ele se o tivéssemos de sobra.
 
Ao sábado, reedições. Publicado no DN, algures em 2002.
 
28
Dez07

O ano

Aos 7 anos, quando me ofereceram a primeira máquina de escrever, em plástico, de marca Petit, fui apanhado pelos meus pais no quarto a brincar aos jornalistas e parece que dizia, enquanto teclava na máquina, “Ouve lá, óh Granja, tu achas que esta noticia tem cabimento no jornal?”. Repetia as conversas que ouvia dos meus pais, e neste caso o Granja era uma referência ao bom velho jornalista Ângelo Granja.
Isto já dá uma ideia vaga sobre a eventual pergunta: mas há quanto tempo é que o gajo acha piada a jornais e revistas?
Há muito tempo.
De todo o modo, não era isso que queria escrever hoje. Queria era pensar nesses tempos recuados da pré-história da ligação ao jornalismo, quando tinha 12, 14, 16 anos. Coleccionava as edições de fim-de-ano das revistas e dos jornais, que traziam balanços e escolhas, figuras do ano e os melhores e piores. Eram “edições para coleccionar”. Eu coleccionava. Ficava impressionado com aquela ideia “A Time escolheu o Gorbachov figura do ano!” – e sentia cada distinção como um Óscar, um prémio, algo reservado apenas a determinadas figuras. Era novo. Tão novo que à escala, e à distância, ficava igualmente impressionado com as escolhas que faziam também, entre nós, os jornais Tempo, O Jornal, Expresso.
Até que.
Até que me tornei jornalista. E vi-me confrontado, eu próprio, com a escolha do músico do ano, ou do político, ou da figura, no meio de uma redacção onde todos davam palpites. Confrontado também com quem escolhe. E como se escolhe. Cai na realidade e magoei-me à séria. Percebi que, com maior ou menor rigor, com maior ou menor sabedoria, as escolhas do ano de um jornal, de uma revista, seja a Time ou a Visão, o Público ou o Estado de São Paulo, são escolhas… de pessoas. Como eu. Como o leitor. Como o blogger. Como o professor. Ou o cientista. Ou a actriz.
Perdi o fascínio pelas edições de fim de ano e deixei de coleccionar os “Balanços” e as edições especiais dedicadas aos momentos e pessoas que “eles” dizem que marcam o tempo.
“Eles”, somos todos nós. Qualquer um de nós. Depende do momento.
Quando se entra dentro da máquina e se percebe o seu mecanismo, o seu modo de funcionar, perde-se o fascínio inocente, perde-se o inesperado embrulho. Fica tudo claro, extraordinariamente claro: somos pessoas a escolher pessoas, pessoas a opinar sobre pessoas, pessoas com defeitos a pensar em defeitos de pessoas, qualidades pessoais na mesa de pessoas com qualidades pessoais.
Uns e os outros. Uns sobre os outros. Eu mais do que tu, porque momentaneamente aparento esse poder. Amanhã, o inverso.
É também por isso que levo a sério o que faço – mas não me levo muito a sério. Isso não.
27
Dez07

PSD, BCP, PS

O problema não foi Luís Filipe Menezes ter decidido ser mais sincero do que é costume - e, nesse enquadrado sentido, reclamar uma justa repartição de lugares entre PSD e PS nas diversas administrações, indiferentemente públicas e/ou privadas, do chamado "centrão". Isso foi apenas “chato” para os dois partidos, porque deu nas vistas, e deve ter feito mais alguns milhares “rasgarem” o cartão de eleitor. Dá igual, o país segue.
Pronto: também foi chato para a banca.
Mas o problema maior foi daí ter resultado a confirmação de que Portugal vive dessa forma ínvia e obscura, entre negociações e favores, fretes e cunhas, repartição de poder. Nos governos e oposições. Nos partidos. Nas empresas. E entre todos os protagonistas: governos, partidos, empresas.
Não adianta falar de corrupção e favorecimentos – talvez comece a ser necessário discutir com rigor o significado dessas palavras. Porque desse debate, e das presumíveis novas ou antigas definições, sairá a normalização, ou não, do "vale tudo". Veremos se o Portugal político “vai dentro”. Ou se se torna definitivamente impune.
Menezes foi útil à Nação: descaiu-se na absoluta sinceridade, em nome dos Partidos que existem.
Ainda há por aí alguns partidos pequenitos?
26
Dez07

A cor do verdadeiro Pai Natal

Estava na Praça da Republica da Ericeira a meio da tarde de sábado. Em frente ao Café Central, uma carripana enfeitada, sob a égide da autarquia local, era lentamente conduzida por um Pai Natal. Junto à carripana, seguindo-a, um segundo Pai Natal, de gigantesco saco de pano vermelho, distribuía presentes às crianças que passavam. Uma imagem de pacífica calma natalícia: famílias, casais e crianças no passeio da Praça, um vendedor de castanha assada a encher o ar de um fumo perfumado, sol a passar por entre os telhados baixos das casas da vila, aquecendo suficientemente o frio que vem do mar.
Na mesa em frente à minha, uma miúda berra:
- Mãe!!! Este é que o Pai Natal verdadeiro!
A mãe, indiferente, enquanto mexe avidamente o café, com os dedos gordos enrolados na colher e tudo quase enfiado na chávena, responde:
- Então porquê, filha?
E a miúda:
- Porque se fosse a fingir não iam pôr um Pai Natal preto, não é?
Pergunto-me, sem grande vontade de obter uma reposta: o raciocínio da criança tem já integrado o conceito de racismo ou constitui apenas, como é normal nos miúdos, um momento de desarmante sinceridade e cruel realismo? Escolho a segunda hipótese.
Mas confesso que me é indiferente a resposta. A criança tem razão. A não ser em campanha eleitoral (ou numa distante capa da revista Esquire , nos anos 60 norte-americanos), jamais o Pai Natal poderá ser este que vejo agora distribuir presentes na Praça da Republica da Ericeira.
Assim sendo: é mesmo o verdadeiro. E eu acabo de o ver.
25
Dez07

Dia de Natal

“Enquanto a fé não vem, é preciso ter fé que venha. Não é tudo ou nada. É preciso acreditar que se pode crer. Existe um estado intermédio, entre o desespero da descrença e a crença, que é um estado de espera, um estar um bocado à nora que é acompanhado por uma esperança. Não é preciso estarmos na fossa para reconhecer que quando não temos fé na alma, fica ali um pequeno buraco.
Quer queiramos, quer não, não há arte nem sabedoria nem amor que o possa ocupar. Só Deus”.
“Para quem quer acreditar em Deus e não é capaz basta acreditar numa preposição muito mais fácil e muito mais simples. Não é só pelo facto de se acreditar em Deus que Deus faz o favor de existir. E, se existir, existe também para aqueles que não acreditam Nele. Existirá até mais um bocadinho. Porque são aqueles que não têm fé que mais precisam dele”.
Miguel Esteves Cardoso
 
De que adianta tentar escrever o que nos vai na alma quando alguém já o escreveu antes, melhor, e mais próximo do que o nosso talento algum dia conseguiria dizer? Ou sequer saber que o sabia com esta clareza e transparência.
24
Dez07

O que temos

“Posso dizer uma verdade? A minha maior qualidade é o meu amor, é a minha família, são os meus amigos, é a minha pátria, são os meus colegas. (...)
A essência da vida está fora de nós. Está nos outros todos juntos, sem lugar, sem tempo, sem saber como. A única coisa que temos é o amor”.
Miguel Esteves Cardoso
 
Há duas ou três pessoas que há muitos anos, mesmo muitos anos, me telefonam sempre na véspera de Natal, ou a quem telefono na véspera de Natal: o Padrinho João, a Inês R., o Carlos C., o Miguel. É do Miguel que me lembro por estes dias, por ter dele mais saudades. É com ele que alimento o blog nestes dois dias. Há que tempos não nos rimos juntos, ao telefone ou à volta de umas sardinhas...
23
Dez07

Peru de Natal

Nos últimos dois anos não fiz, mas este ano regresso ao activo: peru assado para o jantar de 25 de Dezembro (a 24, bacalhau com todos, em casa da mãe).
Vou tentar copiar o estilo do meu herói nestas coisas da culinária, que é o João Pedro Diniz, do blog “Ardeu a Padaria”, e que talvez escrevesse assim...
Já tinha comprado o Peru, e escolhi um exemplar simpático, do Corte Inglês, alimentado a pão-de-ló numa qualquer quinta sem pesticidas. Um balúrdio.
Ao chegar a casa verifiquei que o bicho não cabia num tacho normal, ou mesmo numa vasilha de barro, e tive de voltar à rua para comprar um alguidar de plástico, largo e fundo, onde o peru vai mergulhar na marinada - que em geral preparo um dia antes, mas podem ser dois ou três dias, que só melhora as coisas – até marchar para o forno.
Como estava na rua, aproveitei para comprar algumas laranjas, que não tinha, para juntar aos limões na marinada. Comprei laranjas do Algarve, que a Dona Alice escolhe para mim na Pérola do Bairro.
Assim, pude fazer a marinada no alguidar como se segue: 4 cravinhos, 3 limões espremidos, 3 laranjas espremidas (e mesmo assim deixei lá dentro os frutos de ambos depois de espremidos, com casca e tudo), 6 cabeças de alhos descascadas e partidas aos bocados grosseiramente, meia garrafa de aguardente corriqueira (este ano vou usar a clássica Macieira...), uma mão meia-cheia de sal, seis voltas de moinho de pimenta. E água suficiente para o bicho ficar marinado, isto é, mergulhado, naquela mistela.
No dia da assar, pela manhã, trabalho o recheio: miúdos do bicho cozidos (ou de galinha, também serve... – cozo com sal e meia cebola em água abundante), farelo de pão, pinhões e azeitonas, 100 gramas de carne picada, sal e pimenta, salsa cortada miúda, aguardente. Junto tudo num mixer com ovo (1 ou 2 ovos, máximo), até obter uma pasta grossa, cuja consistência vou gerir com mais pão ralado ou mais líquido (até pode ser água, embora eu prefira cerveja). Deve ficar suficientemente forte para se poder “trabalhar” com as mãos passadas por farinha. Essa pasta pode ser moldada e entrar no peito do peru, enrolada numa prata, ou assar à parte, numa forma de bolo inglês (prefiro esta versão, depois corto à fatia, e faz-me lembrar almoços de Natal n’A Colina, que todo o lisboeta que se preze conhece...).
Com o recheio na forma pronto para o forno, com o forno previamente aquecido a 200 graus, tiro do alguidar o peru e coloco na assadeira de ferro. Rego o bicho com um bocadinho de azeite, e forro a pele com tiras de bacon. Deito-lhe uma concha ou duas de sopa da marinada em cima. Envolvo tudo em papel de prata. E vai para o forno. Daí para a frente é paciência e bom senso: ir olhando, 45 minutos depois de estar no forno tirar a prata, mais 45 minutos e tirar as tiras de bacon, subir para os 220 graus e deixar tostar. Ir regando com a marinada. Vigiar o preparado.
Há um momento em que o recheio está tostado e o peru também. Em princípio, está pronto.
A Asae não tem acesso a nada disto.
Serve-se com um arroz de passas tostado também no forno, batata frita de palito fininho, e ameixas caramelizadas, quando as tenho...
Faço ainda uma salada com alface, rucola selvagem, tomate biológico, queijo de cabra em cubos pequenos, tudo temperado com azeite Romeu, vinagre balsâmico aspergido, orégãos e uma mistura “toscana” de ervas que se vende numa loja gourmet cujo nome não me ocorre agora Oil & qualquer coisa...).
Normalmente, fica bem.
Feliz Natal.
22
Dez07

Não queremos todos os presentes que nos querem dar

O meu Natal tem uma história banal. A rima é despropositada, mas não vou alterar a frase: o meu Natal tem uma história banal. Numa família com escassas ligações à religião – ou que se calhar se escondem por detrás das aparências pragmáticas, e nunca as consigo ver -, o Natal é a ocasião e a oportunidade para compensarmos as ausências, para actualizarmos as referências e os olhares, e termos um bocadinho de tempo para estarmos uns com os outros, e todos em simultâneo.
Na casa de bonecas que era o Penedo, com o meu pai à volta da lareira e eu a enfrentar o frio de Dezembro de bicicleta em riste; na casa do Campo Grande, onde os presentes se escondiam nos armários para os embrulhos não serem “violados” por mim e pela minha irmã; depois, à vez, no Bairro de São Miguel, na Boavista, na Quinta do Lambert, de novo no Campo Grande. O tempo e as condições construíram e desconstruíram natais de todas as cores - mais sentidos, mais interiores, mais festivos. Conforme os anos, conforme os acontecimentos de cada ano. Mas sempre com o mesmo quadro inicial: voltarmos a olhar uns para os outros. Pensarmos uns nos outros e no que cada um gostaria de viver e sentir e ter. Fecharmo-nos sobre o que somos – abrindo-nos entre nós.
É assim que todos os anos “adivinho” o Natal – apesar da história banal, sei que os factos determinam o ambiente. Na nossa família – em todas, presumo -, o Natal cresce quando chega uma criança – como esmorece um bocadinho quando parte alguém. Ninguém resiste à alegria de uma criança quando ajuda a compor a árvore ou o presépio, ou quando rasga desalmadamente um embrulho. Mas não ignoramos, entre os mais velhos, a falta que nos faz quem não está. Nessa medida, o Natal acaba por constituir um momento de confronto e luta – entre o melhor que a quadra tem e a memória que não nos deixa viver tranquilamente com a falta, a ausência, o luto. É um conflito de sentimentos, felizmente sempre vencido pelas crianças, que nos obrigam a renascer todos os dias.
Não consigo, no entanto, deixar de pensar neste conjunto de banalidades sem lhe acrescentar a voz avisada de alguém que aqui há tempos, falando sobre as relações amorosas, me dizia: “cada pessoa que passa pela nossa vida deixa-nos um presente cá dentro. Está embrulhado. Quando menos se espera, desembrulha-se e revela-se. Às vezes é um trauma, outras vezes uma flor. Às vezes acrescenta-nos um ponto, outras vezes retira-nos tudo”. É uma grande verdade com a qual nem sempre contamos. As relações morrem, as pessoas desaparecem da nossa vista, e na aparência tudo fica resolvido e em paz. Mas repentinamente o tal presentinho que nos deixaram dá sinal de vida, desembrulha-se, mostra-se e marca posição. Não há impunidades nem páginas em branco quando se sente. Quando se vive. Lembro-me sempre de uma frase do meu amigo Miguel Esteves Cardoso: “mal por mal, mais vale ser bom”. Quando queremos ser bons e conseguimos, o presente que deixamos nos outros é doce e bom. Mas a vida prega-nos partidas vezes demais.
E não é preciso ser Natal para ver um mau presente dar sinal de vida. Deixando-nos sem norte, ou à procura de outro caminho. No balanço que estas épocas do ano sempre convocam, há presentes indesejados que nos servem de bandeja – e para os quais a única solução, antídoto, medicamento, é mesmo voltar ao começo desta conversa: o Natal pode ter uma história banal. Mas é nessa história, uns anos mais sofrida do que noutros, que está a paz que procuramos todo o ano. Porque voltamos a olhar uns para os outros e, nesse instante de absoluta certeza, os presentes que outros deixaram cá dentro e trazem recheio amargo não conseguem desembrulhar-se. São devolvidos à procedência. E a vida, por instantes, parece feita de novo à nossa medida. À medida da família e dos amigos, que é a massa de que se faz o pão de todos os dias.
 
(Ao sábado, reedições. Texto publicado na Lux Woman, um destes natais passados...)

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Blog da semana

Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.

Uma boa frase

Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira

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