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Dez07
Voltar à terra
Costuma suceder no Natal: a partir de meio do mês vejo amigos, conhecidos, vizinhos, fazerem as malas e partirem. Dizem-me que «vão à terra» e a frase tem para mim um significado telúrico, profundamente ligado à razão da vida. Com orgulho eles regressam a «casa», vão pisar chão que os antepassados pisaram. Não sei se eles são felizes na cidade – mas percebo que é com felicidade que anunciam a partida. Nesses momentos reconheço que, por mais terras que adopte, e já levo algumas no currículo, a minha é mesmo Lisboa – e, nesse sentido ligado à raiz, eu não tenho terra. Sou de um «lugar» onde os ovos nascem nos supermercados e o leite sai dos pacotes, os frangos nunca tiveram penas e os pés descalços pisam alternadamente o empedrado dos passeios e o alcatrão das ruas. Na «minha terra» só se passeia onde «é permitido» e a relva pertence aos cães que os donos não educam. Na «minha terra» o silêncio da noite é ordenado por lei e as estrelas raramente são visíveis a olho nu.
Talvez por isso, e porque na terra onde nasci todos entram sem pedir licença e muitos gostam de aparentar propriedade sobre o território, quando entro numa aldeia, numa terra de «outros», ganho a timidez e a cerimónia de quem acaba de entrar numa casa que não é minha. Os olhares dos velhos que se sentam nos muros baixos a ver o tempo passar são como o ladrar do cão de guarda numa quinta. Sinto-me observado até no gesto simples de pedir uma bica no café central. Fazem-me sentir, na atitude ou na ausência dela, que não sou dali.
Toda a gente se conhece e eu não sou conhecido – sou de fora, portanto. Estou na aldeia do Arripiado numa tarde de sexta-feira. Uma carrinha da «Matutano» distribui pacotes de cereais manipulados e fabricados em laboratório. Há dois homens a beber imperiais no balcão do café. Um cão a ladrar lá longe. O rio corre manso para Sul. Respira-se tranquilidade. Não é preciso olhar para os lados quando se atravessa a rua. Tudo e todos parecem conviver na mais saudável comunhão.
O «passeante que o pintor acrescentou ao seu quadro» sente essa harmonia – e por isso sente-se um estranho, qualquer coisa que perturba o ambiente. Mas o passeante sabe que esta aldeia não é diferente das outras. Como toda, terá o seu lado obscuro, o tal «lado lunar» que Carlos Tê escreveu para Rui Veloso cantar. Por detrás das portas e das janelas das casas pintadas a branco, para lá dos muros que separam vidas, nos «bastidores» do cenário que nos oferecem, escondem-se vidas iguais às das cidades que são notícia, dramas, alegrias, sentimentos, sonhos, esperanças. Esconde-se aquilo de que é feita a vida de todos nós.
Esbate-se, assim, neste pensamento de final de tarde, a diferença essencial que faz dos cidadãos urbanos eternos nostálgicos da terra que nunca tiveram. Na diferença das proporções e do cenário, na possibilidade de se verem as estrelas e de se sentir a terra debaixo dos pés, há uma proximidade a que não escapamos: somos todos humanos. Somos todos iguais.
A não ser na pergunta fatal que fica: de que terra sou?
(Ao sábado, reedições. Anos 90, algures nas páginas do Diário de Notícias)