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Pedro Rolo Duarte

05
Jan08

David Sylvian

Agora eu sento-me na plateia e espero que ele chegue. Há vinte anos que espero por este homem, como se fosse mais um irmão ou um pai substituto, como se sem ele nunca tivesse sido possível viver.
E não foi mesmo. Eu vivi sempre com ele ao meu lado, por perto, a encher a solidão das casas onde vivi, ou a ajudar a fazer-me entender às mulheres que um dia olharam para mim e ficaram. Ele foi a missa que me faltou, o livro que não li, o filme que me escapou. Ele foi tudo quando tinha nada, sempre que tive nada, como foi tudo quando tinha o que queria, sempre que tive o que mais quis. E agora, eu espero por ele nesta plateia cheia, e tenho um lugar vago ao meu lado, onde me apoio e para onde me viro sempre que quero imaginar-te aqui sentada. Tu não estás, eu sei, nem vais chegar. Eu estou só – mas se calhar hoje, mais que nunca, faz sentido estar só, faz sentido guardar tudo para mim, não partilhar, não dar, só receber e sofrer com tanto prazer, gosto, paixão.
Enquanto ele não chega, enquanto as luzes acesas me ferem os olhos sempre que olho para o lado e vejo este lugar vazio, imagino o que quero que ele seja quando o palco se iluminar. Imagino-o discreto, num fato completo, sentado num banco alto, o olhar colocado no infinito. Depois a sequência das canções, September , Let the Hapiness In , Waterfront , Forbidden Colours , Gone to Earth , I Surrender , The Shining of Things , The Scent of Magnolia , Heartbeat , Ghosts , Wanderlust , eu a fazer listas e a desejar mais esta e mais aquela.
Perdido no labirinto do seu génio criativo, deixo que o tempo passe até que as luzes se apaguem. E elas apagam-se, finalmente, A cortina abre-se e ele aparece tal e qual como eu pensei que iria aparecer, e a voz solta-se tal e qual como eu queria que se soltasse, e as canções começam a suceder-se como folhas de um livro aberto ao vento, livres e sem destino, às vezes mais intensas, outras apenas mais profundas e cavadas na terra. The quality of art is that it makes people who are otherwise always looking outward , turn inward » - e com este lema eu envolvo-me na voz e nas palavras, nos acordes e nas variações, deixo as lágrimas seguirem o seu caminho, o percurso sinuoso da minha vida, e de quando em vez cai uma no lugar vago ao meu lado.
Tenho as mãos suadas de as apertar uma contra a outra, vencendo resistências e atravessando de um lado ao outro o que a vida me tem deixado sempre com este som por perto, à frente ou no fundo. Raras vezes em fundo.
Quando o espectáculo acaba, estou literalmente esgotado. Deixo os outros espectadores saírem da sala e fico a recuperar o fôlego , a deixar-me secar, a deixar-me voltar ao mundo normal. Desço as escadas, saio para a rua, há um vento ligeiro a enrolar-se a mim. Estou muito cansado, mas sinto-me outra vez pronto para mais vinte anos a ouvir a voz de David Sylvian sempre que de uma voz preciso para completar os meus dias.
 
Ao sábado, memórias reeditadas. Texto originalmente publicado na revista Egoísta, algures em 2002

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