A mudança praticamente chegou ao fim. Há pequenos resquícios de caixotes aqui e ali, pormenores por acertar, mas o essencial está feito. Da enorme e pesada escrivaninha antiga com fecho de correr em madeira, ao mais pequeno e ínfimo lápis. Passando por toneladas de livros, papeis, jornais, revistas, bocados de uma história que só interessa ao seu autor e (curiosamente também...) actor. Hoje ainda, mais uma caixa para o armário lá do fundo. O meu filho quis ver e gostou do que viu. Eram, entre centenas, estes bilhetes de espectáculos...
Dire Straiys ao vivo em Madrid, 1985 – mega produção que a Polygram portuguesa organizou para assinalar o lançamento do primeiro disco em formato... CD. Justamente “Brothers in Armas”.
Leonard Cohen em Cascais, salvo erro em 1984. Um épico da minha vida nocturna. Este ano regressa, mas eu tenho aquela ideia “cota” de “já ter visto”...
Trovante no Coliseu em 1984 – um espectáculo em que me envolvi profissionalmente, e que acabou numa madrugada excessivamente alcoólica ali no restaurante dos “Bons Amigos”...
Frank Sinatra em Madrid, 1986, Estádio Santiago Bernabeu e uma sombra que pairava sobra a cidade: Sinatra, revelava a imprensa de esquerda, teria sido apoiante de Franco. Ambiente tenso no estádio, bilhetes oferecidos à última hora a polícias e soldados, para compor a moldura humana. Ainda assim, um espectáculo de mestre. Do mestre. O Nuno Miguel Guedes é que lá devia ter estado...
Caetano Veloso, um de tantos que vi dele, todos, talvez. Não sei se terá sido desta vez que acabei a noite com Caetano, a mulher, um grupo que incluía o Carlos Gomes e o José Nuno Martins, todos no Sr. Vinho a ouvir cantar o fado...
Encontrar estes bocados de passado é lembrar que à volta da música houve amores, amizades, promessas, teorias, ideias, revoluções, caminhos. Houve de tudo – e ao olhar cada um destes bilhetes, eu consigo recuperar parte dessa memória. Tenho mais umas centenas de bilhetes e “passes” e “livres-trânsito”. Escolhi alguns que significam para mim mais do que escrevi. Mas o mais interessante é pensar que pedaços de papel, pequenos e frágeis, se arrastam em caixotes, camiões, gruas, de um lado para o outro, numa operação montada com rigor, preparada para ser funcional e prática. Dessa aventura da mudança faz parte a ideia de que estes papeis serão cuidados por profissionais com dedicação e sensibilidade. Como se estes bilhetes – ou folhas de filofax, ou candeeiros sem história - constituíssem, em si, tesouros...
Quando mudamos de casa, além de percebermos que a operação começa mas, na verdade, nunca acaba, tomamos decisões radicais. Deitar fora colecções de revistas que não queremos voltar a carregar. Oferecer o velhíssimo portátil, ainda em bom estado com o Windows 3.1. Reduzir o número de fatos àqueles que efectivamente ainda são vestíveis. Limpar brinquedos que já não estão na faixa etária do filho. Deitar fora dossiers sobre assuntos escaldantes como “rádios piratas e locais”, “projecto site sobre sexo”, “campanha Grande Jogo do Mocho”. Acabar de vez com a gaveta das caixas de fósforos de hotéis e restaurantes deste mundo e do outro. Desta vez, ia deitar fora também os poucos exemplares de “O Independente” – não mais de 30 -, que sobreviveram às anteriores mudanças. ... Até que encontrei esta edição. A do incêndio do Chiado. A primeira que pôs à prova toda uma redacção novinha em folha. E quando me lembrei daquela madrugada e do dia que se lhe seguiu, há 20 anos, entre o Chiado e a Rua Actor Taborda, recuei na fúria da limpeza e arranjei um espacinho extra para esta selecção de exemplares. Já agora, deixo este testemunho: o incêndio do Chiado foi algo que, na redacção do jornal, todos percebemos imediatamente que era importante, grave, marcante, único. Por isso, cada um à sua maneira, queríamos participar na edição especial, queríamos ser úteis, queríamos estar presentes naquelas páginas. O Paulo (Portas), o Miguel (Esteves Cardoso) e o Manuel (Falcão) perceberam esse sentimento. O que melhor lembro do fecho dessa edição foi o esforço deles para conciliar e paginar o trabalho de tanta gente e permitir que todos, da telefonista ao administrador, sentissem a sua impressão digital naquele jornal. E conseguiram. A primeira página desse “O Independente” era notável. O interior era sofrível – mas o importante é que foi sofrido e ganho. Por todos. E todos estávamos naquelas páginas. Era a décima quinta semana da aventura de um novo jornal.
Em 1977, entrei para a UEC (União dos Estudantes Comunistas), cheio de vontade de mudar o mundo e transformar Portugal numa sociedade sem classes, onde todos seríamos iguais em igualdades, direitos e deveres. Pina Moura era o líder mais temido na organização. Zita Seabra estava a fazer a transição da UEC para o PCP, mas ainda mandava muito. Geninha Varela Gomes era a minha referência diária. Os Trovante ensaiavam ser um grupo. Miguel Portas ensinava-me o bê-a-bá do marxismo-leninismo. Eu divertia-me muito na juventude do PCP. Como era um militante aplicado, rapidamente fui promovido e tornei-me um potencial “quadro do partido”. Não tardou até ser “controleiro da célula” do Liceu de Camões. Aos 15 anos, percebi que nunca tinha sido comunista e que tudo não passara de um terrível equívoco onde se misturavam referências familiares, um irrepreensível amor ao 25 de Abril, e um conjunto de namoradas e potenciais namoradas resultantes de uma adolescência precoce. Arrepiei caminho quando dei comigo a ameaçar rasgar o cartão de militante porque não serviam – a mim e à namorada de então – um “cuba livre”, em plena “Festa do Avante”, depois da uma da manhã. A mim?! Revoltei-me, claro. Percebi que tinha da igualdade uma ideia demasiado liberal. Vagamente selvagem. Um tudo nada pequeno burguesa sem sequer a fachada socialista. Enfim, estava fora. E fui à minha vida. O que “eles” nunca souberam foi que o primeiro livro que li na militância activa, aconselhado por um “camarada” meu amigo (e com o apoio de uma “camarada” que devia gostar de miúdos novinhos), foi o clássico “Cabra Cega”, de Roger Vailland (no original, “Drôle de Jeu”). Explicaram-me sumariamente o que era um libertino e eu gostei da ideia. Agora, a arrumar a prateleira da letra “R”, encontro uma página marcada no velho livro a desfazer-se, e um parágrafo sublinhado: “Política e empresa amorosa tinham a sua bela aliança – primeira nota a fixar na análise do «jogo por dentro». Segunda nota, corolário da primeira ou vice-versa: a felicidade individual requer planificações políticas amplas e ambiciosas. O burocrata, o carreirista da governação ou o legislador provinciano têm pavor aos projectos vastos”. Lá está. Eu entrei no tempo certo, mas no partido errado. E nunca mais encontrei um partido certo, nem sequer num tempo errado...
Se o Governo não baixasse impostos, estava condenado à forca porque podia baixar e não baixava, tinha a conjuntura consigo (défice orçamental de 2,6 por cento) e ignorava-a.
O Governo baixou o IVA – ora, ora, abrir a caça ao voto à procura da maioria absoluta, malandrice... Preso por ter cão, preso por não ter. Acho que é por causa destas brincadeirazinhas que cada vez tenho menos paciência para o debate político. Muito previsível, e demasiado pobre. Gosto de aprender, e aqui aprende-se pouco.
Perguntita: Irão as empresas, nomeadamente no comércio e nos serviços, baixar proporcionalmente os preços para fazer reflectir esta descida do IVA? Ou, como sucedeu no caso dos ginásios, farão o favor de se esquecer?
Disclaimer: Se houve algum Governo que, de forma objectiva e sistemática, tenha cuidado de prejudicar, retirar direitos, dar o dito por não dito, afectar a qualidade de vida e comprometer o futuro de pessoas como eu (isto é, classe média, jornalistas, pessoas livres e fora de lóbis...), este foi seguramente o recordista desde 1974. Nem por isso, no entanto, embarco na oposição fácil e gratuita do “está tudo mal, nem que seja porque está apenas um pouco melhor”.
(O que eu penso sobre o tema dos casamentos e do fisco está no post de ontem...)
... Mas as notícias do “Público” empurraram a minha memória para uma história engraçada. Casei nos idos de 1994 e organizei com a minha (agora) ex-mulher uma festa de arromba, feita mais ou menos à nossa medida e dos nossos convidados. Espelhando algumas das pancadas de cada um – eu, por exemplo, exigi que o café fosse expresso e estivesse disponível, junto com sobremesas e muito álcool, logo que os pratos começassem a ser servidos, para que quem quisesse não tivesse de esperar pelo fim da sequência do jantar -, o “evento” teve pouco de cerimonioso e muito de festarola. Dado que a noiva (e toda a sua família) era viciada em doces, e mergulha regularmente em piscinas de açúcar, ovos e amêndoas, havia uma generosa e farta mesa de doces, que nem a “fúria do açúcar” daquela ala do casamento conseguiu devorar. Sobraram bolos inteiros, ou com uma fatia cortada, meios-bolos e mousses e tartes e tortas. Acho que do lado do Jameson, apesar de tudo, sobrou menos... Quando voltei da lua-de-mel, quis almoçar com os responsáveis pela produção da festa para lhes agradecer o profissionalismo e o empenho na coisa. Lá fomos. Pareceram-me um pouco embaraçados com algo que visivelmente me escapava. Contaram-me então que, no dia seguinte ao casamento, um convidado voltou ao “local do crime”, bateu à porta, e abordou um dos elementos do staff que estava a desmontar o “cenário”. Pediu-lhe para ter acesso à mesa dos doces, pois reparara que tinha sobrado muita coisa e, dizia ele, “dado que está tudo pago”, queria levar um bolo que lhe tinha agradado particularmente. O funcionário, delicadamente, explicou-lhe que não podia satisfazer o pedido, porque os doces já tinham voado dali para fora. Para onde? “Isso não sei”, disse o rapaz...
O candidato à guloseima protestou, protestou, mas sem sucesso.
E o funcionário contou o episódio aos patrões, que por sua vez se sentiram na obrigação de me explicar por que motivo os doces que sobraram, inteiros ou às postas, desapareceram sem deixar rasto. Para mim o tema era irrelevante, mas a resposta foi surpreendente e ficou cá para sempre: os doces do meu casamento foram engrossar o mercado de “segunda mão” da restauração. Ou seja: foram vendidos, na manhã seguinte, bem cedo, às fatias, para as tascas de Lisboa, prática que as empresas de catering seguem com sucesso, duplicando assim a facturação dos produtos. Os noivos pagam primeiro na íntegra, os pequenos restaurantes pagam de novo, com o devido desconto, no dia seguinte. Isto explica o facto de eu próprio ter reparado, uma ou outra vez, naqueles balcões de vão de escada, em travessas com fatias estranhas de bolo tipo aniversário, tipo noiva, tipo... tipo segunda mão... Diz que é um bom negócio. Excelente para reportagem, e um doce para os rapazes do Fisco, imagino-os eu, de braço dado com os amigos da Asae. Bom, mas isto passou-se em 1994. Agora não sei, continuo divorciado.
Cartas das Finanças que não estranharei se porventura me chegarem:
Inquérito sobre os lugares onde compro jornais e revistas, por que raio compro tantos todos os dias, onde guardei as facturas, o que quer dizer “Rita:91123456” nas costas daquela factura da FNAC, onde está o Correio da Manhã de 27 de Dezembro a que corresponde esta factura, por que motivo não apresento facturas comprovativas da aquisição do jornal “Meia-Hora”.
Pedido de relatório sobre o uso da Bimby: facturas detalhadas das cenouras, batatas, cebolas, manjericão, pimento, tomate, azeite e água gastos na confecção do famoso “creme de legumes PRD-B”; número de horas de uso anual da máquina e estudo da viabilidade económica da mesma: números dos cheques pré-datados usados na compra da Bimby no ano 2005.
Requerimento simples: comprovativos (mesmo que apenas talões de caixa) da compra diária de 3 maços de Marlboro Lights entre 1976 e 2006. Se possível, morada e telefone dos fornecedores.
Além destes documentos de prova, espero que me peçam em breve para demonstrar que preciso de usar óculos, que o cabelo me cresce a uma velocidade que me obriga a ir ao barbeiro de dois em dois meses, que apesar dos meus conflitos com o IKEA vou lá de propósito comprar aqueles guardanapos de papel enormes, que sou um bocado distraído e por isso tinha alguns livros e discos repetidos (porque me esqueci que já os tinha comprado), e decidi oferecê-los. Ah, e uma explicação bem explicadinha sobre a minha vida amorosa. Factura também?
É verdade: a razão pela qual comprei ontem, outra vez, um requeijão de Seia, foi porque o prazo de validade do outro expirou e tive receio de comer. Nessas coisas sou implacável. Eu sei que foi o terceiro requeijão em 15 dias, e isso pode levantar suspeitas, mas um dos requeijões levei para um jantar de amigos. De qualquer forma, guardei os comprovativos.
O telefone novo? Foi comprado com os pontos da TMN. Sim. Só paguei 40 euros. Tenho o comprovativo.
Casamento? O meu? Foi em 1994. Talvez tenha qualquer coisa num desses caixotes ali ao lado da cozinha. Vejam à-vontade.
PS: Agora a sério: por que não juntar o fisco com a ASAE? Não?
Toda a gente, maior de 30 anos, que tenha mudado de casa pelo menos uma vez, sabe a mais básica lição de todas: uma mudança começa, mas nunca acaba. Há sempre mais um caixote por abrir. Há caixotes que ficam por abrir até à mudança seguinte. E por aí fora.
Um avisado amigo aconselhou-me, depois de ouvir um resumido relatório de ocorrências, o tema de um próximo livro, desta vez realmente útil e prático: Guia do Gajo que Muda de Casa de Dois em Dois Anos. Achei o titulo exagerado, mas considerando que mudei quatro vezes desde 2001, talvez afinal... Não interessa. Eu queria dizer que a mudança não acabou – e que apesar dos telemóveis disputados em escolas do Norte, do Vitória de Setúbal e mesmo da capa da “Única” deste fim-de-semana, a minha mudança é o assunto que, egocentricamente falando, continua a ocupar o espaço entre mim e o blog. Que é um espaço curtinho.
Por isso continuemos... Lá me saltou então de um caixote uma pilha de jornais “Sete” (só consegui digitalizar a parte de cima desta capa “Reininha”, o problema do A-3 quando encontra o A-4...), do tempo em que o Manuel Falcão dirigia, eu sub-dirigia, a Fátima Rolo Duarte concebia o design, e por lá se juntava gente tão diferente quanto o querido Matos Cristóvão e a Margarida Rebelo Pinto, o Fernando Sobral e o Manuel Pereira, o Vaz Pereira e o Jorge Pires. As fotografias do Gonçalo Rosa da Silva. Mudámos o jornal de alto a baixo. Mas, neste começo dos anos 90, sem ofertas de CD’s nem marketing, conseguir aguentar os 25 mil já era obra. Um dia o Miguel levou-me para o “Frágil” e só me deixou sair de lá quando lhe disse que sim, que ía para a “K”. Mais ou menos ao mesmo tempo, um amigo do Manuel desafiava-o para voos bem mais altos e irresistíveis na administração pública. Saímos os dois com pena, tenho a certeza – mas de consciência tranquila. Demos mais uma das sete vidas que o “Sete” teve. E só saímos depois de termos a certeza de que o João Gobern aceitava continuar a obra. Aceitou.
(PS. Por acaso este fim de semana tinha outro tema que merecia uma crónica: dei conta de que o suplemento de jornal de que mais gosto, o “Fugas”, do “Público”, que fez um upgrade fantástico para um formato perfeito e um papel mais apetecível (o que significa investimento financeiro considerável), não tem, mesmo nesta nova versão, pelo menos esta semana, uma só página de publicidade. Que desperdício, meu Deus! Como podem as Agências, os Clientes, os Planeadores de Meios, todo esse universo de burocratras encartados, serem insensíveis ao que tem qualidade, ao que tem leitores com poder de consumo, ao que tem potencial de crescimento? A continuar assim, o “Fugas” não resiste. Dirão então que não tinha viabilidade. Mas é falso: o problema é que vive num mercado onde quem manda, cria e coloca publicidade, vive agarrado à frieza de números absolutamente falíveis, frios e desgarrados da realidade. Mas, lá está, números “seguros” para defender o emprego ou a facturação anual... Anda meio mundo a enganar outro meio, nesta matéria. E o “Fugas”, entre outros bons produtos de imprensa, é que se lixa. Voltarei ao tema, seguramente...)
“Enquanto a fé não vem, é preciso ter fé que venha. Não é tudo ou nada. É preciso acreditar que se pode crer. Existe um estado intermédio, entre o desespero da descrença e a crença, que é um estado de espera, um estar um bocado à nora que é acompanhado por uma esperança. Não é preciso estarmos na fossa para reconhecer que quando não temos fé na alma, fica ali um pequeno buraco. Quer queiramos, quer não, não há arte nem sabedoria nem amor que o possa ocupar. Só Deus. Para quem sinta essa ausência, para quem tiver o azar de dar por falta desse sentido, não há esforço que se possa fazer. O mal é nosso. Ficamos à espera.
Para quem quer acreditar em Deus e não é capaz basta acreditar numa proposição muito mais fácil e muito mais simples. Não é só pelo facto de se acreditar em Deus que Deus faz o favor de existir. E, se existir, existe também para aqueles que não acreditam Nele. Existirá até mais um bocadinho. Porque são aqueles que não têm fé que mais precisam dela”.
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
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