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O meu amigo (praticamente familiar) António Macedo encontrou-me aqui há dias nos corredores da Antena 1 e pediu-me que escolhesse as 5 canções da minha vida e as justificasse em depoimentos de mais ou menos um minuto. Uma rubrica nova lá no rádio.
Estranhei a minha calma. Normalmente estes desafios põem-me nervoso e deixam-me a prolongar o serão uma ou duas noites.
Desta vez, não.
Cheguei a casa, fui ao arquivo do I-pod, e sem hesitações seleccionei as cinco canções. Percebi que não estava nenhuma cantada por Elis Regina, nenhuma de João Gilberto, nenhuma de uma qualquer fase de Pedro Ayres Magalhães, nenhuma de Rodrigo Leão. Poderiam estar, em vez dos Beatles, canções dos Aguaviva, de Carly Simon e de Sérgio Godinho, que povoaram a minha infância no hi-fi dos meus irmãos e pais. Ou seja, percebi que eu não tenho cinco canções da minha vida, tenho mais. Mas o facto de a escolha ter sido imediata e muito convicta, assertiva mesmo, levou-me a fechar o dossier e pensar: já está. Foi esta a minha selecção, e a justificação que dei:
(Escrevi a pensar na oralidade da rádio, não me macem com o preciosismo do português escrito...):
Quando o meu filho era miúdo, passávamos férias na Zambujeira do Mar e era frequente encontrarmos, ao final da tarde, na praia, um tipo magro, com ar um bocado negligente, mas sempre muito atencioso, e que falava longamente comigo por entre umas cervejas ou umas caipirinhas. Às vezes falávamos de música. O meu filho, que era fã do Rui Veloso e achava que toda a música portuguesa se concentrava no Chico Fininho, ficou surpreendido quando eu lhe disse que aquele homem de cerveja na mão e cigarro ao canto da boca era um grande compositor, um notável intérprete. Era o Jorge Palma. Então o meu filho pediu-me que lhe mostrasse canções do Jorge Palma – e porque quis que ele ouvisse um homem que o pai gostava de ouvir, escolhi as canções meigas e suaves do Jorge, como a Canção de Lisboa, próprias para os ouvidos de uma criança com cinco anos. Não lhe mostrei ainda a mais notável das canções, a única que certa vez passei 6 vezes seguidas num programa de rádio. Escolho-a hoje, por achar que é o mais fiel retrato de um país - quando foi composta, há 25 anos, quando a conheci, há 15, e hoje, sempre que a oiço. Talvez este seja o lado B do hino nacional. Um dia quero mostrá-lo ao meu filho – porque um dia ele vai ter de perceber onde vive afinal.
Lucy in the Sky with Diamonds (The Beatles)
Eu era muito pequenino quando os meus pais trouxeram o album “Sgt Pepper’s...”, dos Beatles, ao meu irmão. Mas aquela capa colorida cheia de figuras - que de todo eu sabia quem eram... – atraía-me, e havia qualquer coisa de embalar nas canções, qualquer coisa de canção infantil, sofisticadamente infantil... Acho que “Lucy in the Sky with Diamonds” terá sido a minha primeira canção da vida. Mal sabia que, 20 anos mais tarde, ao ouvi-la novamente, ia descobrir-lhe o poço de virtudes que todo o disco representa. Modernidade, simplicidade, genialidade. Tudo num disco só. Os Beatles continuam a ser, para mim, a mais absoluta prova da existência de um ser superior. Um ser humano, evidentemente.
Sueño con Serpientes (Sílvio Rodrigues, Mercedes Sosa, Milton Nascimento)
De cada vez que oiço o começo desta canção, a voz potente de Mercedes Sosa citando Brecht, regresso a um passado juvenil militante onde a paixão e o amor se traduziam em canções, poemas, e atitudes politicas. Regresso a um tempo onde aprendi valores que nunca mais me abandonaram: lealdade, fraternidade, solidariedade. Regresso a um tempo de utopia – que vai longe, e ainda bem, mas do qual guardo os melhores ensinamentos e esqueço os erros clamorosos e as fraudes hoje visíveis. Esqueço o pior, lembro o melhor. Entre o melhor desse tempo estão canções como esta.
São anos de vida assim: sempre que me perguntam qual a melhor canção portuguesa de sempre, eu digo simplesmente “Era Um Redondo Vocábulo”, José Afonso. Sei que é injusta esta escolha – porque eu não conheço todas as canções portuguesas de todos os tempos. Mas é com essa noção de presumível injustiça que ainda assim escolho esta. Ela reúne, a um tempo, o melhor de José Afonso e do seu tempo: a poesia desconstruída, os notáveis arranjos que vão de Coimbra a Angola e voltam, passando por Lisboa a atravessando tempos e tempos, a composição absolutamente irrepreensível de um ambiente, de uma paisagem, onde entramos em apenas segundos e por lá ficamos minutos. Por lá ficamos até ao fim. A canção é redonda, como redondo é o vocábulo – e o génio está ali. Por isso está aqui.
Apaixonei-me pela música de David Sylvian no tempo dos Japan. Havia qualquer coisa de profundamente romântico e ao mesmo tempo visceral naquelas composições, e percebi que essa mistura provinha da figura de David Sylvian. Quando começou a carreira a solo, tornei-me admirador confesso. Não me lembro de antes nem depois ter tido este sentimento de admiração incondicional por quem quer que seja. Algures nos anos 80 fui surpreendido por uma paixão inesperada na minha vida. O primeiro filme que vi com essa... bom, com essa rapariga, éramos miúdos, chamava-se “Merry Christmas, Mr. Lawrence” – e nesse filme entrava David Sylvian e estava lá esta canção que escolhi. Achei que era um sinal que não devia desprezar. A canção, as canções de David Sylvian acompanham-me desde aí como um livro de cabeceira. Quando veio a Portugal, há 6 anos, comprei 3 bilhetes para a plateia do Coliseu. Queria estar sozinho, e à vontade, sem ninguém ao lado. Sentei-me no lugar do meio e ouvi ao vivo as canções da minha vida. Como esta.
Ao sábado, reedições. Texto escrito para a estreia do site “Netparque”, um dos primeiros portais de informação e opinião que Portugal teve. Há tantos anos... Bom, no ano 2000...
Precisava de uns roupeiros e lá fui à “democrática” IKEA disposto a resolver o assunto, depois de umas horas em casa a medir, imaginar o inimaginável e desenhar esquemas.
Na zona onde se exibem estes objectos anódinos e sem graça estava um rapaz muito simpático, o Valter, que em minutos me esclareceu as duvidas que tinha e ajudou na fase seguinte.
(Toda a gente já sabe, mas pode haver um leitor para quem a IKEA seja misteriosa: ali, naquela gigantesca dupla-gare, o cliente, para pagar pouco e obter qualidade, carrega “caixas planas”, que vai buscar a armários e prateleiras numeradas, onde se encontra a mobília desmontada e, nalguns casos, depois de pagar na caixa, ainda vai a um outro balcão buscar o que pode faltar. Por fim, escolhe: ou carrega para casa e monta sozinho, ou paga para que transportem e montem. Ou seja, quem pode, paga. Já usei as duas variantes, em Portugal e em Espanha, e dei-me bem, apesar da absoluta falta de jeito para a bricolage).
Voltando ao tema. Encaminhei-me para a zona das “caixas planas” com o indispensável carrinho e quando cheguei à secção 55 do corredor 01 percebi que estava metido numa alhada: o meu “carro plano” não aguentava o peso dos primeiros 6 volumes (de um total de 29...) a carregar. Não admira: esses primeiros pacotes pesavam 257 quilos... O total dos volumes dos roupeiros pesava 381 quilos.
Nesse momento dei graças a deus por estar na IKEA: dada a politica socialmente correcta da empresa, as suas preocupações igualitárias, e a sua apregoada relação com o bem da humanidade, certamente os funcionários iriam ajudar o pobre desgraçado a empurrar um número indeterminado de “carros planos”, com quase 400 quilos, até às caixas. Depois de liquidados os euros necessários para aquela “carga”, eu levaria os carros, à vez, até ao balcão de entregas ao domicílio...
Fui para uma fila de apoio ao cliente. Mas parece que era o único a sofrer aquele “problema” de querer comprar demais para as evidentes capacidades físicas. E a funcionária foi taxativa: “A política da IKEA não nos permite ajudar o cliente com os carrinhos”.
Pedi-lhe para repetir.
Ela repetiu.
Eu encolhi os ombros, disse um vago “nesse caso, não posso comprar na IKEA”, deixei tudo como estava, e onde estava, incluindo um saco amarelo com uns suportes para papel higiénico e seis copos perfeitos para gin tónico, e parti para o balcão das reclamações.
Reclamei formalmente.
E agora estou aqui a declarar que não vou comprar os tais roupeiros na IKEA e que daqui em diante evitarei o mais que puder – nem sempre se pode evitar, eu sei... – a IKEA. Senti-me discriminado por ser um homem só, percebi que a minha mãe, de 78 anos, jamais poderá comprar sozinha ali. Eu, que sempre defendi aquele conceito, que ía a Madrid de propósito para comprar na IKEA, que saudei a abertura da primeira loja em Portugal, percebi que a IKEA tem esse outro lado menos simpático e porventura injusto. O de discriminar quem não tem condições para cumprir as premissas da loja (jovens, urbanas, acasaladas, familiares, enfim, estatisticamente correctas no ano de 2008...), mesmo que esteja disposto a pagar por isso.
Um frio que se sente num espaço que se vende como quente. Uma desilusão num cenário que tinha tudo para ser perfeito. Um balde de água fria, foi o que foi.
A razão pela qual, ao longo destas semanas, não escrevi uma linha sobre a luta dos professores portugueses é simples: não consigo entrar em debate quando está toda a gente aos gritos e ninguém se ouve, ninguém quer ouvir ninguém. Os professores estão de tal forma revoltados que formam uma ensurdecedora barreira que não deixa espaço para vozes dissonantes. Os que criticam os professores fazem-no de uma forma primária, generalizada, sem margem para a diferença e a destrinça. No meio não há virtude, porque não há nada no meio.
Ora, eu desconfio de tanta união e de tanta revolta. Mas também desconfio de quem governa sozinho. Desconfio dos extremos, que sempre se tocam e raramente trazem algo de bom.
O que poderia ter sido um excelente ponto de partida para um debate sério sobre educação e ensino em Portugal, tornou-se uma feira histérica em que todos gritam. Ganhará quem grita mais alto? Não sei. Noto que temos assistido a uma das maiores operações de intoxicação geral da opinião pública, vinda de ambas as partes da “barricada”. E isso não fica bem a ninguém. Não dá crédito a quem ensina – porque de quem ensina se espera justamente a clareza e a transparência, para não falar da sensatez. Fica mal a quem governa, porque governar é sempre e necessariamente esclarecer.
Nada disso sucede nos dias que correm. Mantenho-me de fora, portanto.
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