...Ora deixa-me lá descansar enquanto publico, encurtado, um texto teu que eu gostava de ter escrito. Porque sim. Também porque era sinal de que já tinha visto. Não vi. Mas tu viste e eu sei que o que tu vês é muitas vezes igualzinho ao que eu vejo. Vai daí, aqui. Com uma palavrinha ao “Jornal de Negócios”, que publicou originalmente a prosa. E um beijinho daqui de Lisboa...
A Anabela Mota Ribeiro mandou-me o texto para eu me contorcer e ir ao BPI-Net ver como andam as finanças e apanhar um transporte qualquer para Londres. E ver. Ver o que ela escreveu para se ver: “Primeiro não se estranha, depois já estamos entranhados. Vislumbramos ao fundo Hollywood em 2001 (a esfíngica Kidman, a voluptuosa Loren, a eterna Deneuve, a subversiva Chloë Sevigny…). Reconhecemos Demi Moore, numa nudez orgulhosa, a segurar a barriga de sete meses. Uma madonna de Botticelli. A actriz diria: “Neste país, as pessoas não conjugam a maternidade e a sexualidade. Durante a gravidez, não é suposto ser bonita ou sexualmente apelativa. Ou se é sexy, ou se é mãe”. Estava-se em 1991 e Annie Leibovitz, fotógrafa de celebridades, criadora de mitos, legava uma imagem para a posteridade. Noutra parede, Madonna encarna Evita Péron. Um fundo verde do qual ela emerge, envolva em peles. Uma leve comiseração no olhar, uma mão no peito pelos pobres e descamisados. Fotografada pelo amigo Mario Testino. A material girl detém um recorde de capas da Vanity Fair: nove. Testino registou também a desenvoltura de Diana, a outra mulher mais famosa do mundo, a par de Madonna, meses antes do acidente de carro que vitimou a princesa. Ele pediu-lhe que imaginasse que chegava a casa depois de uma festa; e mostrou-a como nunca. Confiante, sexy, moderna. Diana consta desta galeria de famosos. Entramos na sala de exposições e é como se folheássemos um álbum de família. Não se estranha, já estamos entranhados. A haver um apelido para esta família, é Celebridade”. Pronto. Editei o texto, que é maior e melhor. Mas o que eu queria era dizer que a National Portrait Gallery, em Londres, tem até 26 de Maio a exposição que celebra os 95 anos da revista Vanity Fair. “É-se célebre quando se aparece na Vanity Fair, fica-se celebre quando se aparece na Vanity Fair”, escreve a Anabela. Como eu gostaria de ter escrito. Até já.
Uma aldeia no interior alentejano, um coro feminino em vias de extinção, uma jovem doentiamente obesa – com estes três fios se pode começar e acabar um tapete rico, poderoso, e avassalador. Que sorte eu tenho, poder dizer que é minha amiga a Anabela Saint-Maurice, autora do extraordinário documentário “A Luz dos Meus Dias”, que a RTP exibiu ontem à noite, por ocasião do Dia Internacional da Mulher. O que a Anabela encontrou na aldeia de Santo Aleixo, e nas teias sociais, profissionais e pessoais que ali se tecem, foi um riquíssimo retrato da mulher portuguesa, das mulheres portuguesas, e por essa via uma imagem de Portugal (a que o futuro se encarregará de dar o valor histórico que merece). Não é uma boa imagem – mas é aquela que todos reconhecemos quando olhamos com olhos de ver o país onde vivemos. Despida de moralismos, tomadas de posição ou perspectivas de futuro, a reportagem segue um caminho que Anabela tem trilhado com mestria e rigor: os testemunhos e as imagens falam praticamente por si, a intervenção da jornalista limita-se (limita-se? Não! Expande-se, e bem...) ao trabalho autoral, à escolha, à procura incessante do testemunho, do desabafo espontâneo, da palavra crua e certeira. Confronta-se uma certa ideia de urbanidade e ruralidade na pessoa da Presidente de Junta regressada de uma vida social intensa na Suíça, confronta-se a violência doméstica intrínseca e a outra, que se revolta ou reage (e exclama “comigo, nem pensar; mas havia muito, e calava-se”), confronta-se o passado de ignorância com um presente que não é afinal muito diferente, confronta-se a pobreza extrema do passado e a pobreza disfarçada do presente. Confronta-se um Portugal que se traveste de modernidade no marketing mas continua preso ao passado ancestral das relações hierárquicas de sempre: patrão e empregado, mais velho e mais novo, homem e mulher. O Portugal da escala e da escada, o Portugal que nos custa reconhecer e que tapamos com tapumes a que chamámos auto-estradas, “formação profissional”, “shopping center”, “escolaridade”. É tudo isso que passa em “A Luz dos Meus Dias”. E a isso se acrescenta a sensibilidade da montagem, a respiração compassada das imagens do Alentejo, a cinematografia de momentos tão simples como o andar de um autocarro ou a mãe que vigia a filha espreitando pela ombreira da porta. E as pinceladas de um passado a preto e branco que acaba por explicar o presente e, lamentavelmente, adivinhar a ausência de futuro. Pode não ser um bom remate, mas é uma grande verdade... Bom, que orgulho poder dizer que tudo isto, que elogio sinceramente, é obra da Anabela. Razões várias, e todas excelentes, fizeram-nos amigos para sempre, e comovi-me ao longo desta hora rica, poderosa e exemplar. Por ela e pelo seu talento, mas também pelo conteúdo e pelo que isso possa ter acrescentado a quem tenha seguido este momento de serviço público.
Esperei dez dias para confirmar que as imagens da televisão não mentiam. Passaram. E aí está ele, Paulo Portas, Presidente do Partido Popular. Só me apetece acenar-lhe com um lenço branco, num qualquer cais, e ver o seu «Titanic» avançar pelo mar dentro. Adeus, Paulo... No cais onde me encontro estão todos aqueles que, algum dia, trabalharam com ele em algum lugar. Aqueles que acreditaram que a sua paixão pela política se esgotava no domínio dos ideais e no puro jogo de bastidores. Ingénuo, nunca acreditei que Paulo Portas deixasse de ser jornalista. Achei que a incursão no Partido Popular era um «fait-divers» de que se arrependeria tão depressa quanto Vasco Pulido Valente se arrependeu de ter ido para a Assembleia da Republica. No limite, pareceu-me uma espécie de pagamento de promessa ou, mais rigorosamente, um daqueles momentos cinematográficos em que o realizador salta para o «plateau» e faz um pequeno papel. Paulo é um cinéfilo inveterado e imaginei que, como Hitchcock, quisesse entrar em cena num dado momento da acção. Afinal, era ele que realizava o filme do Partido Popular, tinha sido ele a criar o chuveiro para o assassinato em «Psicho». A minha ingenuidade não tem cura. A verdade é que, revendo agora o filme, parece óbvio que todo o guião estava escrito para que, a um terço do final, o realizador tomasse o lugar do protagonista. E aqui estou eu, de lenço branco na mão, no cais de onde sai o «Titanic» que Paulo agora comanda. Desapareceu já do horizonte o Paulo Portas que eu conheci. Um tipo pouco mais velho do eu, muito mais inquieto, com uma intuição jornalística que deixava à toa o mais credenciado profissional. Nem sequer era o meu caso, que aterrava em «O Independente» saído do «berço» do jornalismo de espectáculos e rendido ao potencial da televisão. O Paulo Portas que conheci, nessa altura, constituía o director de jornal perfeito. Não largava a sua presa, fosse uma história política, social, um drama, uma entrevista com Amália. Amava o jornal como se fosse a única coisa importante na vida. Vivia-o intensamente, diariamente, do seu gabinete à velha sala de montagem em Algés, passando pelas caves do edifício do «Correio da Manhã», ali perto do bar «Snob», onde Jorge Colombo passava horas a mudar as páginas que tinha desenhado na véspera. Esse Paulo que eu encontrava nas instalações da Rua Actor Taborda às horas mais disparatadas dos dias mais improváveis podia protagonizar a cena clássica do grito «Parem as máquinas» — porque o que ele queria mesmo, todas as semanas, era mais cinco minutos para rematar uma manchete ou retocar um artigo, fazer um derradeiro telefonema antes do jornal seguir para a rotativa. «O Independente» de há dez anos era constituído por um grupo de vinte pessoas que queria fazer um jornal novo onde pudesse praticar o jornalismo que, nos outros jornais, era efectivamente impossível, porque demasiado preso a dependências, espartilhos, preconceitos e «tendências». Só esse espírito poderia reunir, num mesmo espaço, pessoas tão diferentes, ideias de jornalismo tão díspares, e um romantismo tão exacerbado. Todos desejávamos que «O Independente» tivesse sucesso – até porque, na época, era o jornal mais odiado por todos os profissionais que não trabalhavam nele... —, mas a ambição de vencer o semanário número um do mercado só poderia vir da cabeça de um homem como aquele. Foi um objectivo que ficou por cumprir. E foi a primeira vez que admiti que a pose definitiva de Paulo Portas, quando defendia os seus pontos de vistas ou quando, com aquela inabalável firmeza, distinguia esquerda de direita, poderia constituir apenas um «ponto de partida», jamais um dogma irrefutável. Ainda assim, admiti que Paulo estaria na política de passagem. Convicto, mas de passagem.
O filme estava todo ao contrário.
E agora os analistas deixaram de olhar Paulo Portas como um profissional em «comissão de serviço», um franco-atirador, um «infiltrado» que se diverte a clonar ideias suas na cabeça dos outros. Nada disso: agora, Paulo Portas é um alvo em movimento. Os analistas atiraram-se a ele, finalmente, libertos dessa dúvida metódica sobre o seu caminho. Como o próprio Paulo bem sabe, nestes momentos não há perdões: vieram as contradições, os volte-faces, as juras eternas que se quebraram em menos de um mês. Desenterraram-se os artigos, os discursos, o percurso. Paulo Portas deixou, de um dia para o outro, de ser um «enfant terrible» para passar a ser um adulto igual aos outros num partido igual aos outros no mundo da política igual a sempre. O cais de onde vejo desaparecer ao fundo o «Titanic» vai, pouco a pouco, ficando deserto.
Os lenços foram guardados, as conversas de circunstância esquecidas. Do Paulo que conhecemos resta a memória. A sua maior vantagem – a diferença entre irmãos – desapareceu. Agora, ele é igual entre iguais. Mais um nome para as colunas de «sobe e desce», mais uma peça de xadrez num jogo pouco respeitado. Não voltará a ter o poder que uma página de jornal lhe dava. No limite, usará o telefone para tentar a sua sorte entre todos os títulos de todas as primeiras páginas. Espero que não se esqueça dos icebergs e da dificuldade em navegar quando o nevoeiro desce sobre o mar. Boa viagem, é o que lhe desejo.
Ao sábado, reedições. Publiquei este texto em 1998, no Diário da Notícias, alguns dias depois do Congresso de Braga que Portas ganhou a Maria José Nogueira Pinto.
Andava à procura de qualquer coisa (que não interessa o que é) quando dei de caras com uma ideia muito interessante relacionada com esta nossa paranóia comunicativa dos tempos modernos (de que a blogoesfera é mais um patamar, um dos muitos). Titulo do post: “Be afraid, be very afraid”. Texto: “Temos um blog: «anything you say or do can and will be used against you»”. Estava assinado, por Sam, em Serendipity, foi escrito há quase quatro anos, e deixou-me a pensar nesta ideia de confessionário, de desabafo, que um blog tantas vezes constitui. Passamos a vida a queixarmo-nos do “Big Brother” que está nas câmaras de filmar das lojas, no Multibanco, nas antenas dos telemóveis, na Via Verde, nas declarações de impostos e em tudo o que nos pedem quando pedimos dinheiro ao banco... (A propósito: aqui há dias fui ao banco pedir para mudar a morada da correspondência e deram-me esta resposta extraordinária: “Só aceitamos o pedido com uma factura da nova morada em seu nome, são instruções do Banco de Portugal por causa do crime económico, nomeadamente a lavagem de dinheiro”. E eu a lembrar-me de um amigo que, há muitos anos, recebia as cartas do banco no local de trabalho porque não queria que a mulher - ciumentérrima... - soubesse onde ele “aplicava” o cartão Visa... Coitado desse meu amigo nos dias de hoje...) ... Voltando ao tema: queixamo-nos do controlo, da devassa da intimidade nas fronteiras dos aeroportos, das câmaras de filmar nas estradas. Queixamo-nos de que somos controlados. Mas somos os mesmos que depois abrimos ainda mais a porta de casa a contar a vida em blogues, a deixar a marca da hora a que passamos por aqui, a trocar comentários que muitas vezes revelam intimidade, e cujo backup não sabemos onde fica, e que nos expomos nos Hi5 e Facebook's desta vida, e nos deixamos levar pelo entusiasmo de uma discussão acalorada ou mesmo, quantas vezes, o começo de uma paixão, e “falamos” no messenger como se mais ninguém pudesse “ouvir”. De uma vez por todas, é melhor começar a admitir que escancaramos a vida diariamente porque é assim que ela é vivida nos tempos em que vivemos. Ou seja: «anything you say or do can and will be used against you». Quem não quer, é melhor mudar-se para o campo (de preferência sem multibanco....). Eu nem me queixo. Apenas noto.
O “Público” festejou ontem o seu 18º aniversário e entregou a direcção, por um dia, ao seu colunista Pacheco Pereira. O historiador foi corajoso quando aceitou dar o corpo ao manifesto junto da classe profissional que mais critica, e com a qual é implacável (e muita vezes injusto, para não lembrar os momentos em que confunde teoria da conspiração com acaso, convicção ou até, em situações limite, ingenuidade).
Enfim, Pacheco foi à luta. O jornal que saiu não reflectia, infelizmente, o seu olhar: era basicamente igual ao “Público” de todos os dias. Não conseguiu? Ou percebeu que um jornal é feito por pessoas – e pessoas, que grande maçada, são apenas pessoas?... O editorial reflecte dificuldades, objectivos cumpridos e por cumprir, mas nada sobre o terrível confronto com a realidade. Notei, no entanto, que o “director por um dia” deixou escapar um dos defeitos que mais o arreliam nos media: a confusão entre informação e opinião, de que resulta a presunção de um facto inexistente. Título de notícia na página 12: “Grupo de notáveis liderado por Paula Teixeira da Cruz reflecte esta noite sobre o futuro do PSD”. Terá o jornal “Público”, sob a direcção do exigente Pacheco Pereira, capacidade para determinar quem é “notável” e quem não é? Que critérios objectivos, jornalísticos, determinam a elevação de alguém ao estatuto de “notável”?
(E agora, tentando ser como Pacheco Pereira é – humildemente, sem sombra da sua sabedoria mas, ainda assim...)
O facto de Pacheco Pereira, ele próprio, fazer parte desse grupo de reflexão, não inquina a notícia no dia em que ele é o director do jornal? Com que intenção o fez, ou com que intenção permitiu que a notícia fosse publicada? Quererá ter influenciado, ou mesmo inspirado, a participação de outros, porventura menos notáveis? Ou podemos admitir uma agenda mediática, quem sabe produzida por uma agência de comunicação, que escolheu justamente o dia de ontem para um encontro que, nestas circunstâncias, seria seguramente noticiado pelo “Público”, dado o seu “director por um dia” estar de serviço? Ao aceitar ser classificado pelo jornal que dirigia como “notável”, o que podemos presumir sobre Pacheco Pereira? Dito de outro modo: se um director de jornal permite que o órgão de informação que dirige o classifique de “notável”, não estaremos aqui no domínio claro do conflito de interesses, ou mesmo de um regresso ao passado obscuro dos tempos em que a imprensa idolatrava o poder, o poder que estava, o poder que era?
E por fim, mas talvez mais relevante e sintomático: por que raio Macário Correia é considerado um notável?
(Pronto, já fiz de Pacheco Pereira, agora vou citá-lo: “A comunicação social quer é festa e, quando acha que não a tem, clama por actores no palco”) A verdade é só uma: quem nasceu para director, jamais será estagiário...
Pode constituir afronta a um ou outro intelectual que por engano aterre aqui no blog, mas cá vai: gosto muito de aforismos. Frases feitas. Ditados populares. Sou capaz de estar horas a ler citações nos dicionários da especialidade. É preciso mestria e saber para conseguir a redução ao mínimo de uma ideia eventualmente profunda, com elegância e em formato de “estocada”. Essa feliz conjugação dá geralmente óptimos resultados. (Sejamos claros: gosto de citações, mas não gosto nada daquelas figuras pretensamente sábias que vivem a citar outras, cuja opinião depende da soma de aforismos que conseguem para uma só ideia. Os comentadores amigos do alheio, como lhes chamo...) Ora, ainda em maré de arrumações reencontrei, nesse capítulo, um dos meus livrinhos favoritos: “O Melhor do Mau Humor”, uma “antologia de citações venenosas” assinada por esse mestre superior do jornalismo brasileiro que é Ruy Castro (quem goste de Música Popular Brasileira tem de ler “Chega de Saudade” e “Ela é Carioca”, dois livros notáveis que Castro “compôs” e que são música pura para os olhos...). Ruy Castro seleccionou, por temas, 500 frases cuja ironia, sarcasmo, maldade, ou puro humor negro, nos obrigam a sorrir mesmo que estejamos em profundo desacordo com o que traduzem. Como sucede comigo e com esta frase de Óscar Wilde - “A bigamia consiste em ter uma mulher a mais. A monogamia é a mesma coisa”. Gosto “na mesma”. Estava a passar as páginas à solta pelo livro quando deparei com a categoria “jornalismo”. Lembrei-me logo de José Sócrates. Do Governo. E de como lhes podem ser úteis estas citações que escolhi a preceito para uso livre de ministros, secretários de estado, e por aí fora: Primeira: “Um editor de jornal é alguém que separa o trigo do joio – e imprime o joio” (Adlai Stevenson) Segunda: “Primeiro, apure os factos. Depois, pode distorcê-los à vontade”. (Mark Twain) Terceira: “Sou a favor da imprensa livre. O que não suporto são os jornais”. (Tom Stoppard) Quarta: “O jornalismo moderno tem uma coisa a seu favor. Ao nos oferecer a opinião dos deseducados, ele nos mantém em dia com a ignorância da comunidade” (Óscar Wilde) Quatro citações que generalizam o que não se pode generalizar – mas me deixam com um sorriso ligeiro e aquela pose tentadora: “É que pensando bem...”.
Ao Governo, nesta fase da legislatura, dão cá um jeitaço...
Lá estão de novo a debater o tema da educação. Hoje numa perspectiva enriquecida pelo olhar de sábios como João Lobo Antunes e António Câmara. O debate não corre mal. Mas às tantas vejo levantar-se e falar Carlos Coelho, o homem que os media elegeram para se pronunciar sobre marcas, logótipos, imagem, marketing (Portugal tem esta característica quase risível, porém verdadeira: de vez em quando descobre um “especialista”, fixa-lhe o numero de telemóvel, e ei-lo a fazer jus à ideia do “cair em graça”...). Carlos Coelho é um bom profissional – mas não é tão bom quanto ele se julga. É um excelente vendedor de si próprio, mais do que dos produtos que lhe pedem visibilidade. Não percebo o que pode acrescentar a este painel sobre educação – nem ele, pelos vistos, dado que debita em escassos minutos um conjunto generoso de baboseiras sem nexo, apelando ao apaziguamento da crise entre professores e Ministra. Estou a tentar concentrar-me no que diz, mas não consigo porque não percebo onde quer chegar. Ele também não percebe, enrola-se nas palavras, evoca os filhos que estudam no estrangeiro mas não explica porquê, e às tantas elogia a escola portuguesa pela “sensibilidade” (??). Enfim, parece um espontâneo que entrou sem convite no auditório da RTP. Ora, os mecanismos do cérebro são misteriosos, mas às vezes tremendamente perspicazes. Lembro-me de ter passado há poucos dias pelo site da empresa dirigida por Coelho, e de ter lido qualquer coisa sobre o “achismo nacional”. Regresso agora a correr ao site. Lá está: “Da força colectiva do verbo achar terá, porventura, nascido um dos maiores inimigos das marcas, o achómetro. Constituindo-se enquanto direito fundamental de todos os cidadãos que se acham capazes de tudo achar, as marcas são objecto dos mais inóspitos, variados e múltiplos "achamentos". Nesta medida, e estando sujeitas ao que todos acham, estará o futuro das marcas reservado à procura da unanimidade que conduz à burrice? (...) Perdoem-me a franqueza, mas por favor calem-se aqueles que não sabem achar! Achar significa fundamentar, estudar, pesquisar, analisar e, no final, construir uma opinião concreta e responsável” Carlos Coelho criticou aquilo que acaba de protagonizar na RTP. Ele foi o “achista” de serviço (papel em que, curiosamente, o tenho visto actuar frequentemente). Hoje, em nome do que defende e prevenindo o tal “futuro reservado à procura da unanimidade que conduz à burrice”, perdeu uma excelente oportunidade para estar calado. Não foi a primeira vez. Temo que não seja a última.
Estou ao telefone com M., e depois de descrever parte dos dias deste fim-de-semana, diz-me ela: “Não há dúvida de que toda a tua vida se resume, neste momento, à ideia de arrumação e limpeza”.
Fiquei a pensar, claro. Gostei do princípio: arrumação e limpeza. Depuração. Não gosto do que lhe está subjacente: eliminação, pureza, vida asséptica. Porque gosto dos acasos que o caos sempre convoca. E gosto de acreditar que se pode tropeçar literalmente num molho de revistas que nos devolve em troco a ideia que perseguíamos. Porque não gosto da pureza no que às pessoas diz respeito: gosto de marcas, gosto de vida. Por fim, porque sempre que arrumo e limpo, percebo que ainda me falta viver uma imensa lista de sonhos e vontades e ideias que acumulei em pastas, dossiers e cadernos de apontamentos. E tenho menos tempo do que aquele de que precisarei, o que me angustiará.
Então, para matar a angústia, interrompo tudo e vou experimentar uma receita, ou uma nova sanduíche (agora ando com a mania da mistura de manjericão fresco com cebolinho nas sanduíches, e vou atrás dos “condutos” onde as ervas assentam bem...). Depois volto ao que resume a minha vida nestes dias. Já deverei ter adormecido a angústia, até encontrar o próximo inesperado molho de papeis velhos...
PS - Deixo-vos algumas imagens sem legendas – para que percebam como pode ser fascinante remexer nas coisas que vou juntando, juntando, juntando...
Noitada de arrumações. Tentar aliviar a carga de papel impresso que me cerca. Livros e revistas e jornais e memórias. Como sempre, acabo a noite tendo concretizado 10% do que me propunha – mas por outro lado, deliciado a ver coisas antigas... A revista Donas de Casa, onde a minha mãe foi chefe de redacção. Vejo a edição primeira de 1969 (custava 5 escudos), uma escolha das seis mulheres que mais se destacaram há exactamente 40 anos. Ali está Amália Rodrigues.
(o ano do fado “Dar de Beber à Dor”: “E das saudades o gosto/ Que vou procurar esquecer numas ginjinhas / Pois dar de beber à dor é o melhor/ Ja dizia a Mariquinhas”, uma letra que hoje seria evidentemente vetada pelo politicamente correcto, pelo Ministério da Saúde, e quem sabe mesmo se a ASAE não teria uma palavrinha a dizer sobre isso...)
Ali estão também Laura Alves, Delfina Cruz, Maria Leonor, Laura Soveral, e a entretanto esquecida “Mulher Ideal de 1968”, Sónia Coutinho. Passo as páginas da revista e paro num dossier: “Grande Plano Para a Criança”. Um trabalho sobre os perigos a que estão expostas as crianças em casa, dos fogões às fichas eléctricas. Observo a página, e recuo mesmo no tempo. O miúdo que, nesta foto, morde nervosamente o lábio inferior enquanto olha para o perigo iminente, sou eu. Fazia de “figurante” quando eram precisas fotografias para ilustrar artigos. A minha irmã também. O meu irmão António, mais velho, já era voz activa: o que é ser adolescente nos anos 60, e lá está ele com o seu sorriso franco a responder...
Olho a fotografia e reconheço a minha infância doce. A menina que ao meu lado “brinca” com a ficha eléctrica é a espanhola Paloma, à frente de quem me derretia, apesar de ser demasiado espevitada para a minha timidez. Amava-a e tinha medo dela. Lembro-me tão bem. Lembro-me desse tempo em que viver era a coisa mais fácil do mundo. Mais fácil, porém muito misteriosa. A vida era infinita e o mundo era gigantesco. O meu quarto era do tamanho de um país e eu perder-me-ia no Campo Grande para sempre. É irresistível voltar a olhar este passado e deixar de me perder longamente dentro dele. Amanhã continuo as arrumações...
À medida que os anos passam sobre nós, tornamo-nos cada vez menos ingénuos – ou melhor, cada vez mais desconfiados. Olhamos uma notícia de jornal e pensamos duas vezes antes de acreditarmos na sua motivação, origem, causa, até mesmo transparência. Por que razão está aqui esta notícia hoje, e não ontem? Por que raio este relatório agora? O que motiva esta informação sobre determinada empresa? O que estará a acontecer para repentinamente todos os jornais falarem deste empresário? Boa parte do conteúdo editorial dos media submete-se a leis que escapam aos leitores e aos próprios profissionais. Notícias, relatórios, temas, debates, são provocados, estimulados, lançados, apenas porque dão jeito aos seus protagonistas no âmbito de actividades políticas, económicas, financeiras. É o “timing” que determina o sucesso de cada empreitada – e não há, parece, como escapar-lhe. Ou quem lhe queira fugir. O psiquiatra Carl Jung terá descoberto, ou pelo menos definido, há muitas décadas, o que significa sincronicidade. Uma palavra que os dicionários nem sempre contemplam e que, de forma simplista, se traduz pela probabilidade de haver factos e circunstâncias que (se) sucedem para nos conduzir a um determinado lugar, como se fizessem parte de um guião que predefine a nossa vida. No fundo, a designação que alguns psicólogos encontraram para a expressão popular “não há coincidências” – e que dá muito jeito para explicar o que não se explica ou não se consegue cientificamente justificar. O que Jung não sabia era que, dezenas de anos mais tarde, a sincronicidade fosse a chave da comunicação no mundo moderno. Pode haver blogues e jornais livres e jornalistas absolutamente sérios e impolutos – mas cada vez há menos acasos na actualidade. E, por isso, quando leio uma notícia, qualquer que ela seja, pergunto-me sempre mais do que aquilo que a própria notícia me pode responder. De onde vem? Quem ganha com ela? Quem perde? Quem me traduz o que significa o tempo em que ela aterra nesta página? A sincronicidade foi descoberta para ajudar os homens a aceitar que nem tudo é determinado pela vontade própria, que não dominamos os mecanismos todos da vida, especialmente aqueles que o nosso inconsciente gosta de manipular. Mas agora, tantos anos depois, a sincronicidade serve para nos baralhar, confundir e atirar areia para os olhos. E parece não servir para mais nada.
Ao sábado, reedições. Texto publicado no Diário de Noticias em 2006
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
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