Loucos e sábios
Às tantas, a autora do artigo cita uma frase que teria retirado de um livro: “Com os anos, tornamo-nos mais loucos e mais sábios”. E a seguir discorre sobre esta ideia, e tenta prová-la com exemplos que lhe dão jeito para levar a água ao seu moinho. Fiquei a pensar na frase.
Mais loucos? Sem dúvida. Mais sábios? Nem pensar.
Eu sei que quando se escreve “com a idade”, remete-se para patamares acima dos 50 ou mesmo dos 60. Mas eu tenho a sorte – é disso que se trata... – de ter amigos nessas faixas etárias, independentemente do que eu próprio sinto. E verifico que a mais saudável loucura vai chegando paulatinamente com a idade. Os anos passam e ganhamos uma carapaça que nos defende do exterior, por um lado, e nos orienta, por outro: “eu sou assim, eu sou este, quem não quer, vá de volta!” – e esta postura devolve-nos a loucura de usar umas calças fora de moda ou um chapéu verdadeiramente ridículo e estarmo-nos completamente “nas tintas” para o que “os outros” digam. Mas que interessa? Este sou eu! Esta libertação saudável é muitas vezes apelidada de “loucura” – mas loucos são, afinal, os que não conseguem libertar-se. Nunca me esquecerei do tio idoso de uma amiga minha que, certa noite, quis ir connosco à discoteca “Plateau” e nos ouvir dizer que era difícil entrar, e o porteiro isto, e o porteiro aquilo. Ele pegou na miudagem e avançou sobre as Escadinhas da Praia. Quando chegou à discoteca e o porteiro ensaiou o discurso sobre o consumo mínimo e os “clientes habituais”, o tio da minha amiga despiu o casaco, entregou-o ao porteiro e disse “arrume isto no bengaleiro e não se esqueça da minha cara!”. O porteiro, atónito, ficou a segurar a porta e o casaco enquanto nós todos entrávamos a rir...
Temos menos medo das palavras quando somos mais velhos, e dizemos o que pensamos, interpelamos, somos capazes de nos chegarmos à frente e reclamarmos os nossos direitos, sem nos sentirmos excessivos. Parece que a idade nos torna inimputáveis – e por isso desabridos, sinceros, e com aquela certeza única do “não tenho nada a perder”. Isso é loucura? Receio sinceramente que não...
Já sobre a sabedoria... É um facto que o passar do tempo tudo ensina, e nos empurra frequentemente para a clássica frase “se eu soubesse o que sei hoje...”. Mas as surpresas que a vida sempre nos reserva, os momentos inesperados, as contradições e os paradoxos, as revelações e os ensinamentos, tornam-nos mais humildes, com mais dúvidas, menos seguros. Somos mais sábios? Se calhar somos, mas não é isso que sentimos. É o contrário. Um dos velhos notáveis com quem tive o prazer de trabalhar era o mais inseguro dos colaboradores de um projecto editorial que envolvia dezenas de pessoas, a maioria das quais muito nova. O contraste era brutal: os mais novos, na arrogância e soberba que nem a idade nem o talento lhes permitiam usar – e os mais velhos, entre os quais o escritor e pensador a quem me refiro, cultivando uma inesperada e para mim inquietante humildade.
Seremos sábios, mas ganhamos a relevante sabedoria da humildade. Seremos loucos, mas a loucura da idade é a única que tem dons de normalidade. Voltando então ao começo: o que os anos nos tornam? Melhores. Muito melhores.
Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman