Todos os anos produzo uma sanduíche que é a rainha do meu Verão: além das habituais (ovo, ovo mexido com tomate, pasta de atum, frango com maionese, etc), que vou alternando nas idas à praia, procuro fugir à rotina e crio novas combinações. A deste ano tem a base habitual – duas fatias de pão alentejano cortado fino, o mais fino que é possível, barradas ligeirissimamente com Becel ou manteiga President light – e em sequência:
1 fatia de salmão fumado em cima da qual espremo (umas gotas de) limão, e uma roda de pimenta moída na hora
Duas rodelas de tomate
Uma folha de manjericão fresco em bocadinhos
Queijo Filadélfia finas ervas barrado com generosidade
Três ou quatro folhas/hastes de cebolinho fresco
Uma folha de alface.
Numa variante pontual, acrescentei ainda uma fatia de bacon bem frito, estaladiço....
O meu filho ainda não provou, mas eu aprovei com distinção, e assim evito as estafadas "mistas", fiambre, queijo, etc..
(A edição de hoje da revista do i foi dedicada ao atraso nacional. “Nós, Atrasados” tem, digo eu, que sou suspeito, um conjunto de boas histórias e matérias. Às tantas, lembrei-me de fechar a revista com esta “pequena história sem consequências”...)
“As pessoas gostam de me ouvir tocar guitarra, a coisa agrada-lhes e e eles aderem. Não há mais nada” – foi assim, realmente, a vida de Carlos Paredes, o compositor e músico de alucinada humildade, que viveu sempre num plano diferente dos demais, como se estivesse um pouco acima do plano terreno.
Um génio da guitarra.
Mas também um incurável e incorrigível atrasado.
No começo dos anos 80 do século passado, saía das aulas para o momento de convívio na pastelaria Vita, a clássica paragem dos estudantes do Liceu de Camões. Do outro lado da Avenida Duque de Loulé ficam as instalações da Sociedade Portuguesa de Autores. Naquela tarde, pelas 18:30, Carlos Paredes é esperado no auditório da SPA para um recital – e eu sei disso porque os meus pais me disseram que iam vê-lo.
Chego à Vita, são talvez 18:45, e vejo Carlos Paredes sentado na esplanada, acompanhado pela sua guitarra, dentro da caixa, na cadeira em frente. Tranquilo, bebe qualquer coisa – um galão, estará a minha memória firme?
Ao vê-lo, lembrei-me do recital e percebi que estava obviamente atrasado. Na ingenuidade da adolescência, achei que devia fazer qualquer coisa. Dirigi-me a Carlos Paredes:
- Desculpe, o senhor não tem um concerto aqui na SPA às seis e meias?
- Pois, disse eu, é que já são quase sete horas...
- Ai sim? Não me diga...
- É verdade, são dez para as sete...
- Tenho que começar a pensar em ir andando...
E continuou sentado, ligeiramente menos tranquilo do que antes, mas pausado, com tempo, sem pressas.
O recital terá começado com 50 minutos de atraso.
... Foi desse momento que me lembrei quando, anos mais tarde, em 1988, entrevistei Carlos Paredes para um programa da RTP. E esperei, numa sala fria da então editora Polygram, durante hora e meia. Por fim chegou. E foi nas palavras o mesmo génio cuja guitarra nos chega ainda hoje, sem qualquer atraso, com todo o tempo do mundo, até junto do coração.
(Amanhã a revista do i vai dedicar-se ao atraso - Nós, Atrasados, seja nos dias, na vida, ou no eterno atraso nacional. Mas na semana passada fomos Nós, Hospitaleiros. E saiu-me assim...)
O nome de Miguel Torga nunca se descolará do “Reino Maravilhoso”: “O nome de Transmontano, que quer dizer filho de Trás-os-Montes, pois assim se chama o Reino Maravilhoso de que vos falei”. O escritor deixou-nos o elogio de toda aquela região perdida a norte do norte, do povo que a vive, do povo que a sustem. Quando tive de fazer uma reportagem sobre Trás-os-Montes – ou melhor, sobre a contradição entre a ideia “moderna” das regiões centro, norte e sul, por oposição às províncias que sempre demarcaram Portugal… -, fui com estas palavras melodiosas no ouvido… O homem de Trás-os-Montes feito monumento de consistência e vida, um chouriço e um pão à espera do visitante, uma porta aberta a quem chega: “Ufanos da alma que herdaram, querem-na sempre lavada, nem que seja com sangue. A lendária franqueza que vem nos livros, é deles, realmente. Mas radica na mesma força interior que, levada à cegueira da exaltação, pode chegar ao assassínio. Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde:
- Entre quem é!”.
Lá fui eu pelo norte mais norte de Portugal, entrando em aldeias pequenas e desertas, onde só ouvia portas fecharem-se e gente a virar-me as costas. Torga estava a fantasiar, pois nunca ouvi um “entre quem é” - ou eu não era. Torga é intocável, resta a segunda hipótese: eu não era.
Lembro-me da fotógrafa Inês Gonçalves pretender, numa aldeia deserta, tirar uma fotografia a uma mulher de preto, que levava uma dúzia de ovos ao colo, e ela baixar a cara e gritar:
- Que é lá isso? Não fiz crime, não fiz crime, para que é a fotografia?
Quando voltei escrevi o que vi, o que senti, o jornal onde publiquei transformou-se subitamente numa caixa de correio de transmontanos irritados, incomodados, ofendidos: de António Barreto ao saudoso Hermínio Monteiro, fui chamado de louro ariano a reaccionário, sem apelo nem agravo, e houve mesmo quem sugerisse que me retirassem a carteira profissional e me escovassem para longe…
Passaram muitos anos, muitas luas, e já voltei a Trás-os-Montes, e já conheci mais lugares e pessoas do que nessa época sonhara poder visitar e conhecer.
E acho que aprendi a lição desses tempos taxativos em que declarei que minhotos e alentejanos eram notáveis portugueses, enquanto beirões, algarvios e transmontanos deixavam dúvidas e alimentavam mitos. Aprendi que o sorriso que se dá é, na maioria dos casos, o sorriso que se recebe. Que a mão que se estende tem uma mão estendida do outro lado. E que quando se olha sem sorriso, recebe-se olhar sem sorriso.
Ou seja: hospitalidade é, como cantou António Variações, “dar e receber”. E essa ideia carece, a um tempo, de humildade e nobreza. As chaves para uma vida mais rica. E para a simpatia eterna daqueles com quem nos cruzamos na vida. Comigo foi assim. E aprendi a lição. Talvez, afinal, Miguel Torga tivesse razão: as portas que se fecharam foram aquelas que na verdade eu não soube abrir.
Fotografia tirada ontem, 6 de Julho, às 20:45, nos arredores de Lisboa
"Os antigos diriam que o luar é branco, ou é de prata. Mas a brancura falsa do luar é de muitas cores. Se me erguesse da cama, e visse por detrás dos vidros frios, sei bem que, no alto ar isolado, o luar é de branco-cinzento-azulado de amarelo esbatido; que, sobre os telhados vários, em desequilíbrios de negrume de uns para outros, ora doura de branco-preto os prédios submissos, ora alaga de uma cor sem cor o encarnado-castanho das telhas altas. No fundo da rua, abismo plácido, onde as pedras nunca se arredondam irregularmente, não tem cor salvo um azul que vem talvez do cinzento das pedras. Ao fundo do horizonte será quase de azul-escuro, diferente do azul-negro do céu ao fundo. Nas janelas onde bate, é de amarelo-negro"
Bernardo Soares / Fernando Pessoa, Livro do Desassossego
O Miguel Esteves Cardoso é que tem razão: “Sabe sempre bem virarmo-nos para os nossos pais e gritar-lhes que não pedimos para nascer. Infelizmente, é tudo uma ilusão. Maria João Pires será sempre portuguesa. E quanto mais odiar Portugal, mais portuguesa será. Toda a gente pode renunciar – e é bonito quando renuncia -, mas ninguém se livra”.
Sempre que vejo um artista a dizer que lá fora é que é bom, e que Portugal é uma merda, e que aí Jesus que me vou embora, a única palavrinha que me ocorre é esta: fita. Fiteiros. Fiteiras.
De resto, tenho esperança que seja desta vez que algum jornal vá perceber o que efectivamente se passou e passa em Belgais, onde há arrestos de pianos misturados com despedimentos sem indemnização - e onde, em Novembro de 208, se anunciava “um novo projecto”, “mais virado para a parte comercial”, que metia realização de eventos e alojamento local, casamentos, baptizados, reuniões, encontros e workshops…
Ou seja: é fácil fazer de um manifesto uma manchete e gritar contra o país que maltrata os seus artistas – mais difícil será, neste caso, perceber quem tratou mal o quê. E quem, e onde, e como, e quando, e porquê. Vou esperar sentado, claro.
Soube-se hoje, por fim, quem era a eminência socialista disponível para ser o “animal feroz” cuja pele José Sócrates decidiu despir. Era Manuel Pinho. Mas não fazia tão bem o papel.
Por causa de um post no blog Portugal no Mundo, cheguei a este video. Que não conhecia. E pelo qual me apaixonei - o vídeo, a imagem, Lisboa, a canção dos Rainbirds, uma tarde inteira a ouvir. Tudo.
(Os planos dos minutos 2'12" e 3'34" são simplesmente geniais)
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
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