Escravos do tempo
(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman. Fotografia do autor sob o titulo "Roupa a secar ao ar livre"...)
“Somos, por pouco que o queiramos, servos da hora e das suas cores e formas, súbditos do céu e da terra. Aquele de nós que mais se embrenhe em si mesmo, desprezando o que o cerca, esse mesmo se não embrenha pelos mesmos caminhos quando chove do que quando o céu está bom” – se há obra de Fernando Pessoa que me acompanha para todo o lado, é o Livro do Desassossego de Bernardo Soares. Há anos suficientes para reconhecer nesta citação um bocadinho do que somos, como quase tudo em Pessoa. Desta ideia me lembro sempre que o tempo muda, ou sempre que me vejo a falar do tempo como superior hierárquico dos dias. No taxi onde o motorista saúda o dia de Sol que supreendeu em Fevereiro, na esplanada que a empregada desaconselha porque vem aí aguaceiro, no elevador onde me cruzo com um conhecido que apenas diz “não nos bastava a crise, ainda estes dias cinzentos...”.
Não fui sempre assim, ligado ao tempo. Quando me estreei na rádio, em 1984, pela mão do saudoso Henrique Mendes, lembro-me de uma recomendação que me fez reiteradamente e cuja lógica me escapava: “Pedro, nunca se esqueça de dizer, pelo menos duas vezes por hora, a previsão da meteorologia para o dia seguinte e a temperatura no momento”. Confesso que, aos 20 anos, achava ridícula a sugestão. Tinha coisas muito mais interessantes para dizer, como as datas dos espectáculos dos grupos cujas canções passava ou mensagens subliminares para a namorada do momento. O estado do tempo era irrelevante para determinar os meus dias, e não percebia essa obsessão dos mais velhos com o tempo. Ouvia o meu pai referir-se a “eles”: “eles dão chuva”, “eles disseram que a temperatura se mantinha”, e não percebia o tempo perdido com esse outro tempo.
Com o passar dos anos, dei por mim a ganhar proximidade com este tipo de informação, interesse pelas temperaturas, um olhar mais ou menos tímido à previsão para o fim-de-semana. No Verão fazia sentido ver as tabela das marés, para perceber o mar, e já agora espreitava a meteorologia. Quanto mais anos passavam, maior se tornou o meu interesse pelo estado do tempo. Hoje, tenho três aplicações no telefone para saber as previsões, não falando dos atalhos no computador
Não me foi difícil perceber o que mudou em mim para evoluir da dispensabilidade da meteorologia para a certeza absoluta sobre a sua relevância. Bastou-me este Inverno, e o seu final. Bastou-me a crise profunda em que mergulhámos, o dinheiro que nos faltou e nos falta, o desemprego que nos assola, a politica que nos desencanta. Bastou-me ver o momento do país somado ao Inverno – e de como tudo mudou quando os primeiros bocados de Sol e Primavera chegaram.
Portugal está na mesma, ou está pior. Mas o tempo foi mudando e, como Pessoa bem dizia e o meu primeiro chefe me recomendava, não andamos “pelos mesmos caminhos quando chove do que quando o céu está bom”. Nada mudou na essência da nossa condição actual – mas haver Sol e azul no céu, ser possível passear na rua e sentar num banco de jardim, poder voltar a olhar o mar sem ser abrigado no carro ou no restaurante, enfim... Fazer do tempo o aliado que nos permite, com maior força e empenhamento, resistir a esta outra tempestade que se abateu sobre nós, é o antidepressivo mais barato e eficaz que temos ao dispor. E ansiolítico também. E até comprimido para as dores de cabeça. Olhemos os primeiros dias de sol como Pessoa olhou – e como me ensinaram os mestres da comunicação – e saibamos dar-lhe o valor que têm. Porque é, mais coisa menos coisa, o valor da vida no que de melhor pode ter.