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Pedro Rolo Duarte

03
Jan10

Ter vidas e vivê-las

Dizem que os gatos têm sete vidas porque as suas qualidades intrínsecas – configuração física e muscular, agilidade, atenção, visão apurada, destreza e flexibilidade, entre outras – lhes permitem sobreviver a um generoso numero de contrariedades e escapar a outro tanto de inimigos e armadilhas. Aqui entre nós, acho que o ser humano tem tantas ou mais vidas do que a gataria.

E de todas as qualidades humanas, a que mais mexe comigo é justamente essa: a capacidade de renascer.

Não é preciso ir ao passado mais passado. Basta o passado recente. Basta recuar cinco anos, rever as imagens do tsunami do Sudeste Asiático, e compará-las com imagens de hoje.

Ou ir um pouco mais atrás, lembrar a II Guerra Mundial, 60 anos passados, e ver como renasceu a Alemanha e os alemães, a França e os franceses, a Itália e os Italianos. Ou aterrar em Berlim nos dias que correm. Ir ao Japão, visitar Hiroshima e Nagasáqui. Cidades que renasceram de cinzas, e com elas pessoas e famílias que se desfizeram em pó e do pó voltaram a ter corpo e espírito. Ideologias, atrocidades, crimes brutais – e não cedemos, nem nos entregamos. Resistimos e renascemos.

O esforço, a devoção, a entrega – mas acima de tudo a incrível capacidade de acreditar. Tudo isso é pouco – mas é tanto, para começar a reconstruir, para usar o “re” como alavanca dos dias: renascer, repensar, refazer.

O ser humano é tão minucioso e determinado na destruição como redentor e comovente na reconstrução. Como se nunca acabasse a vida de cada um, renascer é uma actividade que se pratica do nascimento à morte. Há até um último sopro de vida no doente antes de partir definitivamente. Como se, por uma ultima vez, nascesse.

O que a vida ensina é o paradoxo dela própria: não ficamos cá para sempre, mas podemos renascer mais vezes do que julgamos. O passar dos anos dá-nos luz para recomeçar, e a certeza de partir – e na combinação dessas duas energias, uma vida inteira para viver.

Nessa medida, a mudança de ano transporta essa carga simbólica, esse pequeniníssimo renascer que nos vai ensinando a partir do zero – para quando mais tarde precisarmos. Porque vamos mesmo precisar. Devo ter sentido isso há dois dias, pela meia-noite. Sinto sempre, enquanto engulo as 12 passas e, modesto, peço três desejos. Nunca peço para recomeçar – porque já sei que vai acontecer.

Gosto de começar o ano, e de sentir que ele é novo – não por acreditar que o poder de um calendário muda o curso dos dias, mas por saber de experiência própria que cada recomeço é uma lição. Aprendemos sobre nós e sobre os outros – e ganhamos a humildade de reconhecer que é muito provável que voltemos a falhar. Como a vencer.

Quem inventou a ideia de “termos vidas” nos jogos de vídeo, merecia o prémio Nobel da literatura. Porque não há expressão mais poética, verdadeira e triste do que na vida “termos vidas”. E no entanto, é tão bom poder tê-las.

 

Crónica publicada na revista do "i", Nós, Optimistas

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