Ter tempo para vencer
No próximo fim-de-semana temos a clássica noitada dos Óscares – mas acabo de saber que pode não passar de um serão prolongado. Na verdade, a notícia não podia ser mais clara: este ano, a Academia quer controlar mais rigorosamente o tempo gasto pelos premiados com os agradecimentos e homenagens – vai daí, radicalizou os seus regulamentos e determinou o “toque de saída” da orquestra ao fim de 45 segundos de tempo de antena. Pelos cálculos que fiz, quando o premiado começar a falar da importância do periquito no prémio que acabou de vencer, cortam-lhe o pio. Mas o pior não é essa notícia (que, aqui entre nós, espectadores já fartos de adormecer às 6 da manhã, até pode ser uma notícia simpática, embora não seja politicamente correcto dizê-lo...).
O pior é que, para evitar reclamações dos galardoados, a Academia decidiu desdobrar os discursos em plataformas. A saber: cada premiado sobe ao palco e, nos seus 45 segundos de glória, deverá reflectir no agradecimento o significado do prémio e o sentido que lhe faz tal facto – e depois disso, tem uma segunda oportunidade de falar para uma câmara, nos bastidores, sem tempo limite. Aí pode expressar livremente os agradecimentos a toda a gente, ao canário e ao empregado do café, às senhoras da limpeza e ao amante desconhecido. Este segundo testemunho será colocado online no site do evento e os vencedores podem partilhá-lo com os fãs, nomeadamente através do Facebook e das redes sociais de cada premiado.
Estou impressionado com esta esquina de mudança na era da comunicação. Vamos por partes. Há já muitos anos que, dado o número de Óscares a distribuir, havia uma pressão ao vivo e em directo para a brevidade nos discursos. Era, mesmo nesse quadro, algo de contranatura: afinal, ganhar um Óscar é o momento supremo de quem trabalha na indústria do cinema, e encolher esse momento no tempo é um bocadinho como amar toda uma vida e deixar um minuto final para sexo...
Tudo bem, são coisas diferentes. Ainda assim, já havia injustiça. Agora, ao criar uma hierarquização forçada da felicidade, em que há uma fachada formal de alegria e uma explosão completa só para quem quer mesmo muito ver, desvirtua-se a ideia final de um prémio – que é, digo eu, ser uma dádiva a quem é premiado. Vencer, nos Óscares, é agora claramente assumido como um instrumento de promoção da indústria. O vencedor que se lixe. Vá lá festejar no Facebook, se quiser. Desampare a loja. Saia de cena.
Seria risível, se não fosse muito triste. E se não constituísse, afinal, um sinal dos tempos: a democracia do consumo tornou-se na ditadura do consumidor e, como o consumidor tem sempre razão, vamos lá partir às postas a festa do cinema e ordenar o tempo de exposição pública da felicidade de quem ganha.
Vencer não é nada disto. Vencer é outra coisa. Vamos ter de começar a ensinar os nossos filhos o que significa vencer, e qual o sabor profundo da vitória. Dizer-lhes que vencer é bom porque nos superamos. Porque chegámos lá. Porque era mesmo onde queríamos chegar. Que tem sabor. Que se sente. Que não há tempo que condicione o sabor de uma vitória. Que quem nos vê vencer pode vencer connosco mas não pode roubar-nos o prazer da vitória.
Vamos ter muito mais coisas para ensinar aos nossos filhos depois dos Óscares do próximo fim-de-semana.
Aliás, deve ser por causa disso que eu ainda me lembro de Roberto Begnini a saltar por cima das cadeiras do auditório dos Óscares no ano de “A Vida é Bela”. Era o tempo que havia, então.E havia.