Sobre o desemprego
(Crónica originalmente publicada na Lux Woman)
Há uma palavra muito feia que nos tem custado a integrar no vocabulário dos dias. É uma palavra que associamos a incapacidade, a negligência, a “culpa própria” – e que os últimos anos têm demonstrado que pode, afinal, ser colada instantânea e inesperadamente a qualquer um de nós. A palavra é: desemprego. Ou desempregado.
Quando comecei a trabalhar, estar desempregado era um estilo de vida – correspondia ao calão, ou ao indigente. “Há sempre trabalho para quem quer trabalhar” era uma frase feita. Mas o mundo mudou e com ele mudaram as lógicas associadas ao trabalho – morreu de vez o “emprego para a vida”, inventaram-se conceitos sob palavras como “deslocalização” ou “precaridade”. Ter um curso superior não é mais um “seguro profissional” e, paradoxalmente, não ter qualquer espécie de habilitações não impede um sucesso inesperado e repentino num golpe de génio. Esta revolução também alterou o conceito de desemprego. E de desempregado. Não se trata mais de uma escolha, de uma condenação pelo crime de desinvestimento individual ou preguiça, mas antes uma condição inesperada, indesejada, e a precisar de cuidados da sociedade que (ainda) tem trabalho. O desempregado merece respeito – e a sociedade começa a perceber a diferença.
Em Portugal, no entanto, estamos ainda longe da dignificação de quem não consegue ultrapassar os sinais da crise. Tão longe que no universo da política o tema é tratado com leviandade e numericamente (a não ser em período eleitoral, claro...). E tão mais longe quanto o que vos vou contar...
... Aqui há dias, razões diversas me levaram a ter uma tarde livre numa viagem a Barcelona. Decidi voltar à Fundação António Tapies, restaurada e relançada há poucos anos. Ao entrar, consultei a tabela de preços e reparei neste facto: além dos maiores de 65 anos e das crianças, só há entradas gratuitas para mais uma categoria: desempregados. Confesso que primeiro estranhei. Mas, como Pessoa escreveu, depois entranhei e me comoveu o que está subjacente a esta benesse: no fundo, a expressão “já que...”. Já que se está desempregado, com tudo o que isso implica no estado de espírito, no horizonte cinzento, na tristeza. Já que a sociedade não consegue dar resposta ao problema. Já que não podemos fazer mais... Podemos ao menos abrir as portas da cultura, ocupar o tempo de quem tem tempo demais, dar a oportunidade de valorizar e tornar esse tempo rico.
Não tardei a saber se era geral esta atitude, e claro que é: em Espanha, todos os espaços culturais são gratuitos para aqueles que estão desempregados. Em França, a mesma coisa. Seguramente, noutros países europeus.
Em Portugal, nada disso. A condição não existe, nem a ideia, nem a proposta. Políticos, sindicalistas, comentadores – toda a gente debate o desemprego, toda a gente tem palpites sobre a crise. Ninguém se lembra de coisas simples, sinais, pontos de honra que marcam a diferença.
O que senti neste espaço cultural espanhol foi o reconhecimento de que o desemprego é uma condição humana – como a velhice, ou uma qualquer incapacidade física – que mais tarde ou mais cedo pode bater-nos à porta, e que devemos por isso considerá-la com respeito e atenção. Disponibilizar cultura a quem tem demasiado tempo livre pelas piores razões é um sinal social de solidariedade e um sentido de responsabilidade relevante. O que eu senti, naquele momento foi um sentido maduro e sensível do “estado social” que enche a boca dos políticos mas se esvazia imadiatamente. Alguém quer começar, em Portugal, a olhar o desemprego como ele é, e não como ele sempre foi?