Reproduzo daqui, do site da revista Visão: “Islândia: falência levou o dinheiro, não a criatividade Os bancos faliram, as famílias entraram em bancarrota, o Estado estremeceu. Veio o FMI, mas o sistema de protecção social não mudou. Democracia: é a receita dos islandeses para sair da kreppa, o nome da crise na terra do vulcão Eyjafjallajökull. Os banqueiros vão ser julgados. O anterior primeiro-ministro vai ser acusado. A Constituição está a ser revista por cidadãos comuns. A pequena ilha nórdica quase foi ao fundo, mas está a reinventar-se”.
Este lead abre o apetite para uma reportagem notável do jornalista Paulo Pena. Merece por inteiro os 3 euros que a revista custa. Ele captou o espírito islandês e conta-o com desenvoltura e talento, sabendo escolher os melhores exemplos, os casos inspiradores, e tudo o que convocou um pequeno país para uma atitude proactiva, imaginativa, inovadora. Acima de tudo, inteligente e com saída. A revolução que se está a operar na Islândia é admirável - e é claro que aqui no nosso cantinho, ficamos com inveja e perguntamo-nos (eu, pelo menos, pergunto-me...), “porque raio em Portugal não somos capazes de nos juntar e sermos melhores uns para os outros e para nós próprios?”.
A resposta, infelizmente, é simples: a Islândia está em 17° lugar no ranking mundial do Índice de Desenvolvimento Humano e todos os seus habitantes acima de 15 anos são alfabetizados. Ou seja: um povo culto e desenvolvido facilmente percebe que não vai lá com o choradinho da bancarrota e a entrega das armas ao FMI. Um povo culto e desenvolvido diagnostica os erros cometido, pára para pensar, e determina o seu caminho em função de um novo horizonte. Mesmo que venha ajuda externa.
Exactamente o contrário do que sucede em Portugal: um povo ignorante e pouco desenvolvido tem medo de mudar, nem percebe o que lhe está a acontecer, e por isso prefere dizer “que são todos iguais”, “todos a roubar”, e depois voltar a votar “neles”, ou vai à sua vidinha e nem sequer vota. Esse povo baixa as calças e deixa que tomem conta disto – enquanto os responsáveis se alocam nas empresas privadas que antes os financiaram, e a culpa morre solteira, paga com o dinheiro de quem o não tem. No fundo, um povo ignorante e pouco desenvolvido vive ainda no medo. O medo dos outros, mas em ultima análise de si próprio. O tal “medo de existir”.
É muito fácil fazer como eu faço e escrever uns posts sobre o tema. É mais ou menos como ir para a rua mostrar indignação. Ou fazer uma greve em nome dos “direitos dos trabalhadores”. É tudo muito fácil quando já sabemos que o “mesmo tudo” vai ficar na mesma. Na Islância foi diferente: as manifestações, os protestos, a bancarrota, a crise, foram molas efectivas para uma mudança profunda de paradigma. Não foi conversa nem “protesto” barato. Foram ideias, foram pessoas a chegarem-se à frente, foi no fundo uma palavrinha que gastámos como solas de sapato mas nunca interiorizámos como sangue do nosso sangue: democracia. Leiam a reportagem do Paulo Pena e “oiçam como ela respira”...
Fez em Março 15 anos que morreu o escritor Vergílio Ferreira. Foi meu professor – infelizmente, menos tempo do que eu (hoje...) gostaria -, tornei-me seu admirador tarde demais, mas ainda a tempo de o entrevistar para a revista K, em Abril de 1991. A entrevista, que o surpreendeu porque não se lembrava do meu nome e foi confrontado com um ex-aluno, em vez de um jornalista, está algures num blog dedicado à revista. Agora, outro blog pediu-me para o republicar. E eu pensei: porque não deixá-lo aqui também, apesar dos 20 mil caracteres de texto? Não é esta a minha sala de estar?
Então sentem-se tranquilamente, e nunca se esqueçam que basta um click para mudar de blog ou de site. Para já, e para estes dias, é o que temos: a minha entrevista ao escritor Vergílio Ferreira...
O PROFESSOR não sabia, não se lembrava do n.º 20 daquela turma mal comportada do 11.º ano do Liceu de Camões. Mas eu lembro-me bem dele: caminhava pelos corredores de mãos atrás das costas, ligeiramente curvado para a frente e era assim que entrava na sala, sem um sorriso, uma palavra, até que todos estivessem sentados e calados. Então começava a correcção do trabalho de casa e mais uma aula densa, fria, chata, cheia de gramática e apontamentos e perguntas a que nunca sabíamos responder. Uma vez por outra, chegava um "ponto". Uma vez por outra, uma aula sem matéria para dar, só com o professor tentando o diálogo, falando das árvores da Praça José Fontana ou de um livro que devíamos conhecer. Naquela turma não gostávamos muito do professor Vergílio Ferreira e comentávamos o facto de ser público - estava escrito na Conta Corrente - que ele detestava dar aulas. Detestei essa ideia e, tendo os seus livros em casa, comprometi-me a jamais lhes tocar.
Até que um dia, há poucos anos, quebrei o compromisso e abri ao acaso um volume da Conta Corrente. Devo ter lido algo deste género: "E agora que fazer? Gostava tanto de levar até ao fim os dois livros começados. O romance. Sei agora mais claramente o que queria. O périplo de uma vida à procura da palavra. Viemos ao mundo para a encontrar. A palavra total, a que nos diga inteiros, a que nos diga a vida toda. Procurei a minha e não a encontrei. E estou a chegar ao fim. Ou encontrei apenas a do silêncio. Ou a palavra enigmática que a mãe do narrador desse meu romance Para Sempre lhe diz ao ouvido à hora da morte e ele tenta entender através da vida inteira."
Comecei a ler os romances, os romances todos, tudo, e escrevi-lhe uma carta, que nunca mandei, a pedir desculpa por não oter lido antes. E agora estou à frente do escritor a contar-lhe esta história e a pedir-lhe, humildemente, que comente a minha própria atitude. Diz que "mais vale tarde do que nunca" e sorri, como só um professor sorri. Sentado num cadeirão castanho, rodeado de livros por todos os lados, o professor fala:
É talvez a primeira vez que alguém dá essa ideia de mim, enquanto professor. Têm-me referido alguma austeridade, um homem de poucas palavras, mas a isso é contraposto sempre o professor afável e tolerante. Não me lembro de pretender ser rigoroso. Havia, é verdade, uma coisa que me incomodava muito, que era o aluno distraído, a conversar para o lado - mas sempre que o detectava, atribuí a mim a culpa, entendia que era uma deficiência, sentia-me vexado, diminuído. A minha reacção nunca era castigar - mas dizer coisas que interessassem o aluno, tentar segurá-lo e captar-lhe a atenção.
K: Mas era muito rigoroso, por exemplo, com a manutenção do Caderno Diário, coisa que rapazes com 17 e 18 anos já achavam que era exclusivamente da sua conta...
Ah, mas isso eram as regras do jogo. Eu tinha o hábito de, no fim de cada período, folhear os cadernos dos alunos, e acho que estava certo: se um aluno não tem o caderno diário em dia isso significa que está ausente das matérias, que não se interessou. O caderno diário é útil no dia-a-dia. Mas, sinceramente, nunca me julgaram assim tão rigoroso, embora ache natural que, se o senhor antipatizava comigo, não lesse a obra do escritor. Não sei o que hoje pensa do que pensava, mas presumo que, olhando da sua idade adulta para essa idade juvenil, algo se tenha alterado. Eu sempre fui contra o professor mandão, sempre descontente, marcando faltas de castigo, sempre fui contra tudo isso.
K: Embora detestasse dar aulas e assumisse essa opinião publicamente...
Olhe, nunca o ocultei porque cumpri sempre. Conheço professores que diziam gostar imenso de dar aulas - e eram professores que não davam as matérias, não faziam exercícios, nada. Ora, como eu tinha a consciência tranquila de cumprir, de ensinar como podia o que tinha de ensinar, estava à vontade para dizer que não gostava de dar aulas, porque não gostava mesmo! Estou, por outro lado, convencido de que, se me pusessem perante as duas hipóteses - ser apenas escritor ou ser escritor e ter uma segunda actividade, por exemplo, ensinar - eu preferiria sempre a segunda. Dedicar-me apenas à actividade literária significaria afogar-me na escrita, na leitura, perder contraste. Assim, depois de uma manhã de aulas, sentia-me livre para começar outra coisa e a escrita saía mais original, mais virginal. Se vivesse de manhã à noite mergulhado na tarefa literária, aquilo que escrevesse não teria a mesma vitalidade.
K: Então foi importante, para a carreira do escritor, a actividade do professor?
Sem dúvida que sim. Sabe, quando era rapaz era melhor aluno a ciências do que a letras. Fui para letras porque tinha aprendido latim no Seminário e resolvi capitalizá-lo, pô-lo a render, tirando um curso que por outro lado eu presumia dar-me rapidamente uma colocação. Não escolhi mal. Hoje, possivelmente, teria optado por outra secção, talvez filosofia, ou românicas. Mas deixe-me dizer-lhe que tive prazer em algumas aulas, em alguns momentos. Em Évora, por exemplo, dei literatura todos os anos, e escolhia sempre uma aula por semana para aquilo a que chamava paleio, conversa. Nessa aula, eu falava-lhes de literatura contemporânea, arte, levava-lhes álbuns com quadros de Picasso, Matisse, e era estupendo... Já em Bragança, onde tinha estado um ano, na altura em que os americanos estavam na berra - o John dos Passos, o Steinbeck, entre outros - eu dava a conhecer esses nomes, essas obras. A um moço de Bragança, que muitas vezes nem sequer tinha visto o mar, falar-lhe de um autor que ele não conheceria tão depressa de outra forma era uma maravilha. Eu não gostava realmente de dar aulas, mas às vezes agradavam-me esses momentos, sobretudo quando sentia que os alunos estavam a abrir os olhos... isso é comovedor,é emocionante... Agora, ir para uma sala dizer 'ó menino, o sujeito, o predicado, o complemento’, é realmente uma chatice! É necessário, mas há coisas absolutamente necessárias que se não gosta de fazer, não é?
K: Tem a noção de que o seu nome, no tempo em que estava no Camões, se confundia com o próprio Liceu?
Não, de maneira nenhuma. De resto, a pensá-lo teria sido já muito antes, quando estava em Évora, numa altura em que o meu nome já era conhecido.
K: Qual era a relação que estabelecia com os seus alunos?
Bom, é outra matéria-prima, a de Lisboa, muito diferente da de Bragança ou até de Évora. A cultura faz-se com o ambiente, o ambiente familiar, um filme que se vê, uma conversa no café, enfim, o mundo exterior. É evidente que um moço de Lisboa é mais desenvolvido, mentalmente, e por isso mais fácil de ensinar.
K: Quando saiu o Até ao Fim, depois do Para Sempre, explicou os seus títulos referindo-se à degradação e perda dos valores por parte da juventude. Não consigo perceber a relação, tanto mais que já tinha deixado de dar aulas, já tinha abandonado esse convívio directo com os alunos...
Bom, deixei de dar aulas mas não deixei de estar atento ao que se vai passando. A verdade é que, quando era miúdo, eu e as pessoas da minha geração tínhamos pais - eu tinha os pais emigrados, mas tinha umas tias... que nos impunham os seus valores - e nós não discutíamos. Um miúdo não discute, é até certo ponto passivo e, no que diz respeito a valores que o transcendem, ainda discute menos. Mandam-no ir à missa e ele vai. A minha geração ainda encontrou determinados valores - por exemplo, políticos. Não podemos esquecer que o comunismo teve extremo peso na mobilização de muitos jovens. Ora, quando se verificou ser o comunismo um logro - o maior do século vinte - todos os mitos se esvaíram. Ele era o eixo central de todos os valores. Em face de quê, hoje, um pai impõe um valor a um filho, se ele os não tem? Sê honesto - mas sê honesto porquê? O rapaz não pergunta mas sente. A juventude de hoje está desarmada de valores que a preparam para a vida. Foi isso que quis dizer.
K: É isso que ainda pensa?
Bom, eu defendo sempre como último valor - porque é o primeiro de todos - o homem e a vida. E pressinto que esse valor, da defesa do homem e da vida, começa a apontar genericamente para o que se chama ecologia e onde se inclui evidentemente a defesa da vida. Pressinto isso até nesse movimento extremamente equívoco que é o pacifismo, a que não adiro (embora, até por preguiça, seja bastante pacífico...).
K: Então já há um valor, uma ideia?
Pergunto: terá o jovem de hoje um ideal que unifique a vida? Não sei, mas este pode ser um movimento... Sabe, eu fui sempre sensível ao problema da arte - é ela a primeira a detectar os movimentos da História (e a História aqui é um termo cómodo, porque não existe. É um nome onde se metem milhares de factores, as guerras, os livros, tudo...). A História não pára e a arte tem sempre uma palavra a dizer. Hoje, penso que a arte está em grave crise e, para outros, mesmo no fim. Se leu Até ao Fim, há-de lembrar-se da entrevista que o jornalista faz à escultora cuja obra era um monte de pedras. Aquilo não era inventado, aquilo era verdade, eu vi aquilo numa exposição de polacos, que tinha um estendal de sapatos velhos e um monte de pedras. As pessoas desatentas riem-se, troçam, mas a coisa é grave - não são eles que chamam àquilo escultura, é a História, ao actuar no lado invisível de nós. A História assemelha-se à água que passa debaixo da areia; a gente não a vê e lá à frente ela irrompe outra vez. O erro de Marx foi pensar que podia condicionar a História. Mentira: ela está-se nas tintas para os Marx's, decide sozinha, na consciência ou inconsciência dos homens. Agora, veja bem a ironia da História: pelo uso da praxis científica do marxismo, provou-se que ele próprio era um logro...
K: Facto que deve ter consolado muito o dr., habituado, num país onde a maioria dos intelectuais é de esquerda, a remar contra a maré...
Foi um consolo, sim. Eu tive a sorte de viver o bastante para ver cair os dois fenómenos que mais detestava: o fascismo e o comunismo. Vi a queda de um e de outro e a que realmente me surpreendeu foi a do comunismo. Aquilo era, como agora se diz, um bunker, uma estrutura de cimento armado impenetrável. Mas a História lá se meteu numa fenda, como as plantas se metem por entre as pedras e fazem estalar os passeios, e o bunker estalou. Pude vê-lo, foi bom...
K: Deram-lhe razão...
Ter razão antes do tempo é errar - leva-se de todo o lado, atiram-nos pedras. Mas também é acertar: passei um mau bocado, mas estava certo...
K: Na Conta Corrente e em muitas entrevistas assume sempre o papel de mal amado da literatura portuguesa.
E fui, fui mesmo...
K: Mas agora, desde Para Sempre, é uma unanimidade, toda a gente gosta de si, dos seus livros. Como é que analisa esta mudança?
Então, relembro-lhe o desmoronamento do comunismo...
K: Há relação entre uma coisa e outra?
Então não há? Há uma relação íntima. As pessoas esquecem-se de que, no tempo de Salazar, não havia só a censura oficial, havia também a comunista, que funcionava, como podia, nos jornais, nas editoras, nas revistas. Era aí que se determinava quem era génio (eles não têm medidas, são logo todos génios...) e quem era imbecil. Houve o 25 de Abril, o PC continuou a ter força e depois chegou a perestroika e aí é que começou o problema. Eu lembro-me de um fulano que durante 30 anos me filou a canela e só com a perestroika a apertar-lhe os queixos é que ele abriu as mandíbulas! Costumo dizer que o golpe final foi a queda do muro de Berlim, porque essa gente estava lá dentro - e quando caiu o muro eu fiquei visível, estava do lado de fora...
K: É hoje um homem tranquilo?
Não, não posso, porque sou sempre maior do que eu próprio. Quer dizer: a diferença que vai entre aquilo que se sonha - vagamente, claro, porque quando o sonho se torna nítido, realiza-se - e aquilo que se faz é sempre muito grande. Às vezes, releio os meus livros antigos e de alguns ainda gosto, mas com outros quase cortei relações, não os visito sequer...
K: Quais?
Ah, isso não digo, isso queriam os outros que não me gramam... E não é só isso: sendo certo que todos os pais têm um filho ou outro de que gostam mais, nunca o dizem, não manifestam publicamente a preferência. Eu faço o mesmo, claro.
K: Continua preocupado com o facto de dizerem que se repete, que aborda sempre os mesmos temas?
Bom, isso é o drama de todo o escritor, ser diferente na igualidade. Costumo dizer que o que há de mais diferente na igualidade é o mar - somos capazes de estar a olhar para ele uma hora seguida, é sempre igual mas é sempre diferente: o tamanho de uma onda, o rebentar de outra, a espuma. Ora, se é possível no mar essa diferença, também é possível no escritor...
K: Sabe, dr., ainda hoje penso porque é que uma pessoa com vinte e poucos anos como eu, fica fascinada por livros que falam da morte, como os seus, quando esta é justamente a idade em que a morte não existe, não vai existir...
Nos meus livros há mortos mas não há cadáveres... faz a sua diferença, não é? A verdade é que a morte, a reflexão sobre ela, é para mim uma forma de valorizar a vida - tal como é contra um fundo de escuridão que um fósforo aceso se vê. Essa reflexão não serve para nos afundar, mas para a vida irromper mais forte. Eu sou consciente - e é em função da morte que para mim a vida tem significado. Na sua idade isto não existe, é verdade, mas é bom que através dos meus livros tome consciência da sua existência. Isso significa que fui útil. Porque é que um jovem não há-de pensar nisso? Neste meu último livro, a morte continua a estar muito presente, mas houve quem me dissesse que, depois de o ler, tinha ganho mais amor à vida. Como o doente quando volta a ser saudável - ou o suicida que é salvo a tempo e passa a olhar o mundo com uma atenção extraordinária, como uma revelação.
K: Se juntarmos a sua reflexão ao facto de anunciar sempre que o seu novo livro é o último que escreve...
Ah, sim, mas eu explico: quando escrevo um romance fico sempre com o poço vazio. A sensação que tenho é de que já não há mais nada para dizer. Só que, inconscientemente, a vida encarrega-se de me encher de novo o poço. E quando está cheio, transbordo para outro livro. Agora, por exemplo, tenho um romance já esquematizado e falta-me um enquadramento que não o aproxime muito de outros que escrevi, como o Para Sempre... O último livro, Em Nome da Terra, foi uma sorte, um acaso: surgiu porque, na sequência ia doença de um cunhado, tivemos de o internar num, como se chama?, sim, um lar de idosos, que é um nome bonito que eles põem a essas casas. Bom, fui despertado para a situação dos velhos - gravíssima, do ponto de vista social - e desses lares. Pronto, tinha o problema do romance. resolvido. Agora, estou na mesma situação: à espera que Deus nosso Senhor me conceda um milagre desses...
K: Na Conta Corrente sente-se que o arranque de um novo romance é, para o escritor, um drama...
Eu não me lembro de começar um romance continuar por aí fora até ao fim. Nunca. O caso extremo que tenho é o de Alegria Breve: ia com o livro a meio quando me disseram: sabes que Melo, que é a minha aldeia, está a ficar desabitada, há ruas inteiras que já não têm ninguém? Dei a clássica palmada na testa e pensei: aqui está o enquadramento para o meu romance. Tinha a ideia base, que é a da História em suspenso, a de que o termo de alguma coisa é sempre o começo de outra. O que aconteceu com a Alegria Breve foi excessivo, mas é normal recomeçar tudo ao fim de dois, três capítulos. Preciso de apanhar o novelo e seguir o fio. A escrita é que revela o romance, o escritor nunca faz ideia do que vai ser o romance - é um pouco como criar uma pessoa, ou como um rio: um rio, quando nasce, só sabe que quer ir para o mar. O trajecto é sinuoso, é definido sem controlo, é a tactear que ele chega ao fim. Como o escritor: sei que quero ir para o mar, mas como vou não sei.
K: Já várias vezes disse que o romance tinha os dias contados, não foi?
É como um saco de pedintes, cabe lá tudo, cabe a filosofia, o jornalismo, cabe tudo. Assim, lá se vai aguentando, como o gato, com sete fôlegos O que o pode salvar é a estrutura e a matéria. Aliás, estou com curiosidade em ver que romances vão escrever agora os nossos escritores. Eles terão de fazer longas reflexões porque isto mudou muito, o mundo mudou todo. É claro que dizer a nossa mágoa é já uma forma de a superar, mas a verdade é que não se podem voltar a escrever livros como o Alves Redol... E rasamente lhe digo que, para o século vinte, não vejo mais do que um Raul Brandão, o romance do Sá-Carneiro e um do Régio. Para este século, ficamos por aqui...
K: Sente-se beirão, naquilo que são as características que geralmente se lhes apontam?
Exteriormente, não tenho aquela rudeza, a pujança física, a agressividade do beirão. Mas é verdade que interiorizei algumas características: a obstinação disseram-me sempre que, era obstinado. Embora fisicamente pouco viável, vou sempre até ao fim quando me meto numa tarefa. Sou rude, trágico, soturno como a serra da Estrela. E interiorizei a neve, claro, aquele encantamento todo. Sabe que eu sei de cor a Balada da Neve, que é um poema medíocre - e até tem um erro de sintaxe... - mas de que não consigo deixar de gostar?
K: Queixa-se amargamente de Lisboa, confessa-se um beirão. Agora que está reformado podia largar a cidade, não?
Agora não posso. Estou aqui há 31 anos, todas as relações estão aqui, temos aqui o Lúcio, que criámos, o filho e netos, tudo isso. Lisboa nem é uma cidade como Nova Iorque ou Tóquio, aquelas grandes cidades, mas para mim já é excessiva. Eu ficava com um quarto da cidade...
K: Qual quarto?
Olhe, este onde vivo! Ficava com Alvalade e o resto podia ir tudo embora. Às vezes penso nas viagens que fiz em Lisboa, pela marginal, que é perigosíssima, os problemas de trânsito... hoje já não vou
K: Escreveu cinco volumes da Conta Corrente pronunciando-se sobre tudo e todos, diz que é dos escritores mais entrevistados, pedem-lhe opinião sobre tudo, diga-me: expõe-se dessa forma por dever, por prazer, porquê?
Eu não sei o que sou para poder expor o que sou, nem estou interessado. Vou aprendendo o que sou com aquilo que me dizem, só isso e aquilo que sei de mim não o exponho dessa forma. Não há nada que mais ofenda os outros do que as nossas queixas - ficam fulos, está-se a exigir-lhes compreensão e piedade para connosco. Então o que é que eu faço? Digo sem dizer, dou um traço de ironia, brevidade, enfim, utilizo técnicas que visam a aceitação do leitor sem que me chegue a considerar um chato...
K: Tem receio de ser considerado um chato?
Se for na escrita, é mau. Às vezes dizem-me "ah, o dr. é tão melancólico" e eu, para despachar, digo "sou, sou ". Mas acho que não - as pessoas que convivem comigo dizem que sou laracheiro, digo piadas, sou irónico. Agora, quando entro na arte é a sério - e tal como o Picasso dizia que quando ia pintar deixava o corpo lá fora, quando eu escrevo deixo as piadas lá fora... Um pouco como diz a Amália, bem pensado todos temos um fado. Eu tenho este, o de escrever: e cumpro o meu fado. Gosto de escrever e gosto que me leiam. E já agora, que me digam quando gostam. Quanto à vaidade, sou tão vaidoso como os outros, não sou modesto, sou igual a toda a gente. Mas, por exemplo, não gosto de ser reconhecido na rua, sentir aqueles olhos a fitarem-me. É muito desagradável...
K: Perguntam-lhe pelo próximo romance...
Pois, se eu soubesse. Mas eu não sei, não sei o que vai ser...
K: Escreve à mão? Estou a ver ali uma máquina de escrever...
Ah, sim, a máquina, odeio a máquina, é horrível. Mas tem de ser, eu tenho uma letra terrível, somítica. Antigamente tinha os meus dactilógrafos, que a entendiam e que até colaboravam nos livros, metendo palavras deles. Palavras que faziam sentido, claro. Muitas vezes, eu nem dava por elas. Dei comigo, anos mais tarde, a reparar nessas palavras e a pensar "eu não escrevi isto, não era assim ", e depois ia ver o original e realmente não estavam lá... Mas agora tenho de ser eu a passar. Com Em Nome da Terra demorei um mês a copiar o texto, com enorme sacrifício. Sabe, é que escrevendo à mão sou logo eu projectado no papel, enquanto com a máquina há o bater das teclas, dá cabo dos nervos, é preciso estar sempre a puxar o carreto, é um drama, é terrível...
É quando o professor volta a olhar o relógio de bolso, uma cebola grande e antiga, e diz que chegámos ao fim. Falámos hora e meia e está fatigado. Mas, voltando dez anos atrás, ainda me diz: "Pronto, faça lá a redacção disto tudo e espero que o que lhe ensinei no Liceu, apesar do rigor, o ajude a tornar esta conversa legível. Sabe que falar e escrever são duas linguagens diferentes. E a fala é já de si expressiva pelos gestos, tom de voz, o que naturalmente a escrita não tem."
Não vi ao vivo o espectáculo “Três Cantos”, que juntou José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto, mais as suas cantigas de tantos anos (algumas delas, das minhas preferidas de toda a vida...). Tenho o disco que resultou desse espectáculo, mas também nunca me deu para o ouvir.
Devia ser premonição - a RTP passou esta noite o espectáculo e percebi de onde vinham os meus maiores receios. Foi confrangedor ver no mesmo palco três pessoas sem qualquer espécie de empatia entre elas, cumprindo um roteiro do “ora canto eu, ora cantas tu” sem ponta de lógica emocional (ou sequer temporal, vá...), aqui e ali desafinando, sempre de olho na letra por memorizar. Nem um abraço sentido, nem um momento de comunhão, nada – até no momento em que cada um recebe o seu cravo, José Mário Branco queixa-se da falta de cheiro da flor, facto deliberadamente ignorado pelos seus companheiros...
Sérgio, Fausto e José Mário parecem fazer questão de não olhar uns para os outros, de não partilhar o momento, de não transmitir sentimentos nem por um momento os denunciar. Cumprem o guião e cantam à vez. Se eu gostasse de teorias da conspiração, diria que eles nos quiseram dizer: “nem pensem que somos como os brasileiros”... Mas não, acho mesmo que alguém os obrigou a fazer este espectáculo – e eles fizeram-no, impondo a condição de estar cada um para seu lado, como se nenhum deles tivesse um coração ligado ao cérebro.
Por menos que queira, estes “Três Cantos”, que tristemente vi sempre à espera de uma qualquer “redenção”, constituem simbolicamente aquilo em que (certa) esquerda se tornou: uma má encenação de si própria, uma ilusão sem saída de emergência, um encontro de desencontros. Daí resultam os equívocos que dão Manuel Alegre, ou Bloco de Esquerda, ou Fernando Nobre. Três tristes cantos. Desencantos, numa palavra só.
Em 1974, quando se deu o 25 de Abril, eu tinha 9 anos, quase dez. Guardo na memória uma manhã bem passada sem ir à escola, recordo a tensão e ansiedade no ambiente familiar (sem que isso me incomodasse – parecia uma tensão positiva, se me faço entender...), e depois lembro-me dos meus pais me porem em cima de uma chaimite, junto ao então Estádio da FNAT (hoje 1º de Maio), para que o fotógrafo Carlos Gil me tirasse uma fotografia com militares, cravos e espingardas. Terá sido na famosa manifestação do 1º de Maio, julgo eu.
Era um slide, um diapositivo (uma “coisa” que havia antigamente e que em vez de ser um negativo - que dava uma fotografia em papel -, era um positivo que se podia pro
jectar na parede ou imprimir numa revista). O slide andou comigo muito tempo nas caixas de fotos de sempre. Lembro-me bem dele. Mas perdeu-se nalguma mudança de casa – e como todos os slides, era objecto único. Eu tinha a idade que a foto documenta – basta agora imaginarem-me em cima de uma chaimite, ao lado de militares de G-3 na mão com cravos nos canos. Foi assim, há 37 anos.
Há dez anos, o meu filho a descansar num intervalo da intensa procura de ovos e chocolates e doces diversos (que os pais tinham escondido) no terreno da Boavista, e a minha mãe a saborear o seu entusiasmo. Domingo de Páscoa. Avó é isso, neto é isso.
A “Saveur” – uma das quatro ou cinco revistas que sonho um dia fazer em Portugal... – dedica a sua edição de Abril à sanduíche, elevando-a, justamente, ao estatuto de estrela da culinária. Tem receitas, reportagens, memória. Entre outras ideias, gosto desta: a sanduíche típica de cada país diz muito do seu povo e da sua cultura, seja na forma como é produzida, no cuidado da confecção, no requinte ou nos produtos que a compõem. Eu acrescentaria a tudo isso a maneira como a designamos, para poder convocar, em português matarruano, a clássica “sandes”. E as “sandes” portuguesas: de coratos, a bifana, o prego, a “sande-panado” (que nos tempos da K foi eleita a melhor, especialmente se comida na Palmeira da baixa lisboeta...), a “sande-pastel-de-bacalhau” e mais umas tantas. Nem por acaso, parece qua a sanduíche russa – a que chamam “butyerbrod” – é aberta: não há pão a fechar a torre que se ergue a partir da fatia inicial... Tudo se explica, afinal.
Desde que ando a ler esta edição da “Saveur” que me deu para as sanduíches. Algumas já deixei em posts anteriores, uma que me saiu bem há poucos dias fica agora aqui.
A base é pão alentejano fatiado fino, e ligeiramente tostado no forno, barrado com muito pouca manteiga.
Fritei um hambúrguer que fiz com carne picada comprada no talho, sal marinho misturado, mexido à mão e passado na frigideira em azeite só com pimenta e meio-alho.
Juntei uma fatia de queijo manchego meia-cura, em cima da carne quente, para derreter muito ligeiramente.
Duas rodelas de tomate.
Algumas folhas de rúcula selvagem, misturadas com uma colher de sopa de cebolinho cortado.
Uma rodela de ananás de lata brevemente passada pelo azeite de fritar o hambúrguer
Dois ovos de codorniz estrelados.
Fechar a sanduíche com mais uma fatia de pão, ou não, é questão de pormenor. A mistura é boa e constitui uma refeição excelente para dias de crise.
Também gosto, às vezes, a meio da tarde, de uma fatia de pão torrado em cima da qual espalho umas fatias de presunto pata negra cortadas bem fininhas, uma fatia de queijo Camenbert, uma colher de compota de morango (uso Quinta de Jucais, da Serra da Estrela) e uma folha de hortelã...
Claro que isto tem a ver com tudo menos com Páscoa. Mas eu e a Páscoa nunca tivemos grande relação...
Tenho pensado bastante nesta dinâmica entre realidade e percepção da realidade desde que vi o desempenho de José Sócrates no Congresso do PS. Já consultei socialistas empenhados, mas nenhum deles se abriu. A questão, para mim, é simples: a única forma de encarar a dura realidade que nos cerca e fazer de conta que ela não existe, ou conseguir criar uma outra realidade contra toda a evidência, é com a clássica dupla droga/álcool, ou com uma medicação inovadora (e não detectável pela Brigada de Trânsito…). Sabendo que José Sócrates não é homem de excessos ou ilegalidades, o que eu queria conhecer mesmo era a dieta dele. De que se alimenta, que tipo de vitaminas complementam a refeição. Ou, e isso é que era, se os americanos já inventaram – e deram a estrear ao nosso primeiro-ministro - um medicamento que nos permita viver fora da realidade sem deixarmos de ser convincentes quando dela falamos aos outros.
O meu sonho é viver como José Sócrates – fora de realidade, mas convencido e convicto, resistente e taxativo -, mas não há comprimido que “me faça” o pleno. Alguém do gabinete me pode ajudar? A sério, também queria ser mais feliz.
Quando Fernando Nobre diz que nem conhece ainda o programa político de Passos Coelho e já é candidato numero um por Lisboa e putativo Presidente da AR, é grave. Ou melhor, é revelador da figura e do seu carácter. Agora, quando o mesmo Fernando Nobre vem à RTP explicar-se, e consegue piorar o quadro - quem votar nele, passa um cheque em branco, dado que o senhor só decide o que vai fazer com a sua eleição depois de mesma ocorrer… -, ele dá-nos um banho de verdade e transparência. Daqui para a frente, só loucos ou inconscientes votam, em Lisboa, no PSD. Porque depois da vitória, Nobre decide se fica, se parte, se fica independente a votar contra o próprio PSD, se fica a fazer sudoku na Assembleia, se vai brincar no Facebook, enfim…
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
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