Não estou cá para outra coisa
O vento e as nuvens não deixam que a temperatura passe dos 21 graus. Mas a resposta à pergunta habitual do meu filho – “não vais tomar banho?” – é sempre a mesma:
- Não estou cá para outra coisa.
Ele vai e volta com a prancha. Mas de fato vestido, claro, noto eu sem “cê”.
Depois de resistir, e de tomar decisões definitivas, e de tentar ler o jornal com vento em excesso, e depois de ver que ninguém, mesmo ninguém, mergulha nesta água gelada e violenta, com ondas que nem nos deixam molhar os pés, há uma qualquer loucura que de mim se apodera e aos poucos, habituando-me à temperatura, cedo ao meu desejo profundo e deixo que uma onda passe por cima de mim e me deixe tão gelado quanto feliz. Parece que a onda varre impurezas, tristezas, memórias, o FMI, a colecção de cromos do “telefono-te para a semana”, desilusões. Mesmo “em frio”, o sol no corpo com sal é redentor. Sem isto não vivo.
O António Maria persiste em confrontar as ondas. E faz bem.
Ao fim da tarde, depois de um generoso gin tónico, refaço de raiz espetadas compradas no supermercado: misturo porco com vaca, acrescento tomate grosso em lascas, echalotes descascadas, pimento verde, sal grosso posto na hora. Quando tudo aquilo passa pelas brasas, feitas na rua, e ganha cor de se comer, percebo que o Verão está mesmo perto.
Nada vai mudar por vir a ser Verão – mas pelo menos sei que vou sentir-me mais vivo e menos parte do que nos torna a todos infelizes. O facto de nada mudar não quer dizer que não mudemos. Apenas por nós, ou apesar disso.
É como a esperança, mas com temperatura e cor.