… Porém, se tivesse de escolher uma figura do ano 2013, não hesitava: o Papa Francisco era o meu eleito. Como seguidor da clássica escolha anual da revista Time, fico sempre confortado quando a minha opção coincide com a da revista. É o caso, e para mais pelos mesmos motivos: o novo Papa mudou “o tom, a preocupação e o enfoque de uma das maiores instituições do mundo”. Acrescento: e das que tem maior influência no estado geral da nossa civilização. Bem precisa de gente de bem. Como parece ser o caso.
Tenho a profunda convicção de que, vivo, Nelson Mandela convidaria todos estes cromos para jantar. Mas não é demais recordar episódios como este, que leio no Público online:
"A libertação de Nelson Mandela foi reclamada por actor Mário Viegas, quando protestou contra a polémica presença do Presidente da África do Sul, Pieter Botha, e do ministro dos Negócios Estrangeiros, Pik Botha, na Madeira, a 13 de Novembro de 1986.
“ANC! Mandela! Mandela”, gritou Viegas quando os responsáveis pelo regime racista entravam nas adegas da Madeira Wine Company, no centro do Funchal, perto do Teatro Municipal, onde estava a ser representada Catástrofe, de Samuel Beckett, com encenação e cenografia do actor. "Estava na avenida [Arriaga], quando vi muitos carros pretos a parar. De um deles, saiu Pieter Botha, o Presidente da África do Sul, que visitava a Madeira. Não me contive e comecei a gritar, de punho direito erguido, 'ANC! Mandela!', 'You are a racist' – uma vergonha, reconheço”, relatou numa entrevista à RTP1 o actor, que faleceu em 1996.
Viegas descreve assim as reacções do visitante e do seu anfitrião: “O Botha foi, no entanto, impecável. Virou-se para mim e disse: 'OK, it's your opinion'. O Alberto João estava estarrecido”. No dia seguinte, acrescenta, o Jornal da Madeira, propriedade do governo regional, “chamava-me esbugalhado, esquerdista, otelista e convidava-me a sair da ilha”.
A calorosa recepção proporcionada pelo chefe do governo regional ao Presidente da República da África do Sul, Pieter W. Botha, e ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Pik Botha, motivou um protesto da Assembleia da República, aprovado com os votos de PS, PRD, PCP e MDP/CDE e contra de PSD e CDS. A visita do “principal responsável do apartheid” à região “põe em causa o princípio da unidade da política externa portuguesa” e contraria “o sentido da história, da liberdade e dos direitos humanos” que condena aquele regime, frisa o documento.
Numa declaração política que precedeu a discussão do voto, José Carlos Vasconcelos (PRD) lembrou que a visita ocorria num momento em que "a CEE, os EUA e outros países da OCDE decidiram passar da condenação formal do regime do apartheid a medidas concretas para o combater”. E que a atitude de Jardim atentava “contra a unidade de acção externa do Estado português, diminuía a credibilidade da nossa posição na CEE”, “pode prejudicar, a prazo, as potencialidades de Portugal como interlocutor na África Austral” e ser “prejudicial à grande comunidade portuguesa, designadamente madeirense, na África do Sul”.
Vasconcelos recordou ainda que a recepção à comitiva dos Botha ocorria na sequência da atitude das autoridades regionais de “desrespeitar ostensivamente o luto nacional pela morte do Presidente Samora Machel, um amigo de Portugal, decretado pelo Governo da República”. “Duas semanas depois, inacreditavelmente, [Jardim] recebia de braços abertos o Presidente de um regime universalmente condenado pela violação dos direitos humanos”.
No debate, Manuel Alegre (PS) criticou o silêncio do primeiro-ministro face à atitude de Jardim, “um silêncio revelador de falta de coragem política e de sentido de estado”, “um silêncio que só pode ser interpretado como de cumplicidade ou capitulação”.
Citando o meu "sócio", amigo e compadre João Gobern, há minutos no Facebook:
"Está na hora de voltarmos a ouvir, uma vez que seja. os Special AKA e o grito que tantos ecos despertou: Free Nelson Mandela! Depois, já em silêncio, vale a pena pensar como um recluso resistente, mitificado ou não, deu lugar a um homem que nunca prescindiu dos princípios e da ideologia, nunca trocou palavra com o preconceito, nunca olhou de cima para ninguém. Nem para os seus carrascos. Mesmo agora, diminuído pelo tempo, pelas sevícias, pelo desgaste, ouvia-se a sua voz, mesmo que não precisasse de falar. Não há insubstituíveis, pois não - mas há "os que lutam uma vida inteira, e esses são os imprescindíveis". Obrigado pelas lições contínuas. Que descanse em paz e que outros aproveitem os caminhos que rasgou, a bem de todos".
(Texto escrito para assinalar os 50 anos de carreira de Carlos do Carmo. Hoje reencontrei o texto no CCB - e depois de um notável, emocionante e inesquecível espectáculo, trago-o aqui para casa. Parabéns, Carlos!)
Há analogias felizes. Esta é uma delas: Carlos do Carmo está para a música portuguesa como o 25 de Abril de 1974 está para Portugal. Não tomem por exagero o paralelo: antes de Carlos do Carmo, o fado era conservador, reaccionário, fechado e sem saída à vista. Como o país. Depois de Carlos do Carmo, o fado abriu-se ao mundo e a si próprio, ganhou dimensão e profundidade, vida e liberdade. Como Portugal. Quando começou a cantar, Carlos foi de mansinho inovando, abanando a modorra da canção, em passos sem medo, mas com corrimão por perto. Até à “invenção do dia claro”, como disse o poeta. Eu era miúdo e não me esqueço de ver o meu pai entrar em casa e dizer: “Acabei de ouvir. O Carlos do Carmo tem um disco que vai mudar a face do fado e da musica portuguesa”. Era a sua revolução, chamava-se “Um Homem na Cidade”. O meu pai tinha razão. Carlos rompeu todas as barreiras que separavam o fado do país entretanto acordado para a liberdade. E dando à canção rédea livre, soltando-lhe amarras e iluminando-a, contribuiu para que se tornasse unânime, como a democracia; incontornável, como a liberdade; apaixonante, como a construção de um país novo. Pelo caminho, houve tempo e espaço para tropeções e hesitações, incompreensões e até ódios – mas também nessa matéria Carlos do Carmo foi o 25 de Abril da música: despertou controvérsia até ganhar estatuto incontestável de instituição nacional. Ao fim de meio século, a instituição teria tendência a calcificar, adormecer, sentar-se à sombra das conquistas? Teria. Porém, uma vez mais, Carlos do Carmo acompanha Portugal, e onde antes havia revolução, há permanente renovação: quando o querem transformar em dado adquirido, ele ousa fazer-se acompanhar de Maria João Pires, cantar com Rui Veloso ou reinventar-se com Bernardo Sassetti. As revoluções nunca morrem enquanto o seu espírito as mantiver despertas e sensíveis. Carlos do Carmo sabe tão bem que assim é, que se dá ao luxo de alimentar a sua revolução interior a golpes de génio e criatividade. Se, ao fim de 50 anos, isto não é o melhor que um cantor pode ter, não sei o que poderá ser. Ou talvez saiba: o próximo disco, a próxima ousadia, a próxima conquista desta revolução permanente.
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
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