A notícia de que o espaço do cinema Londres vai virar Loja do Chinês incomoda e entristece qualquer pessoa que, como eu, viva há quase 50 anos entre a Avenida do Brasil e a Praça de Londres. Tenho autoridade redobrada para falar: o meu pai foi quem delineou a (bem sucedida) campanha de promoção e lançamento do cinema, no principio dos anos 70, com o filme “Morrer de Amor”; e até fechar, preterindo mesmo a qualidade técnica de outras salas, sempre que um filme que queria ver estava no Londres, era lá que eu o via. Por facilidade, proximidade, porque sim. Dito isto, as noticias das petições para salvar o Londres, para não deixar que ali se instale a dita Loja do Chinês, para que a cultura não perca mais um espaço, também me incomodam. Muito. O suficiente para lembrar que:
Conhecendo eu, nem que seja de vista, a esmagadora maioria dos lojistas daquele bairro (autores de uma das petições…), nunca vi qualquer deles frequentar o Cinema Londres (especialmente quando ele mais precisou de espectadores). Nem eles nem muitos dos cinéfilos que andam pelo bairro a queixar-se, mas “sacam” filmes da net, pirateiam DVD’s, ou preferem as pipocas de outras salas.
Se o Cinema Londres fechou não foi seguramente por vontade de quem se viu confrontado com a falência. Foi porque as regras do livre mercado, a mudança de paradigma no negócio da informação e da cultura, e o famigerado “sistema” - que, convém sublinhar, a esmagadora maioria dos portugueses aprova quando vota nos partidos que o sustentam - assim o ditaram. Estive em dezenas, centenas de sessões do Londres com dois, três, cinco espectadores. Vi amigos que o frequentavam renderem-se à qualidade técnica do Corte Inglês ou de outras salas. Assisti à degradação do mercado com a ligeireza da pirataria. Estavam à espera de quê?
Acho sempre comovente esta união dos portugueses em torno daquilo que eles próprios mataram - e que, se não tivesse morrido ( e tal só sucederia à custa do Estado…), estaria agora a ser criticado como mais um esbanjamento injustificado… Custa a crer, mas é verdade: a maioria quer isto que estamos a viver. Quer lojas do Chinês no lugar do Londres, boataria na net em vez de jornais, borla em vez de preço justo. Quer na medida em que promove, por negligência ou roubo ou simples ignorância. O resultado vai ser sempre o mesmo. E vai doer.
(Remédio? Não se queixem depois de ajudarem a matar, promovam a vida enquanto é tempo. Queriam o Londres vivo? Fossem lá ver filmes. Querem jornais? Comprem-nos, paguem-nos. Querem cinema de qualidade? Não pirateiem. É fácil. Basta querer. Chorar nos enterros é tão mais fácil.)
Confesso que me considero o mais liberal dos profissionais no que respeita à relação entre jornais, media, e anunciantes. Defendo parcerias, acordos, patrocínios, defendo mesmo que a imprensa tem muito a aprender com as técnicas e a filosofia da publicidade, e vice-versa. Nos tempos do DNA, fizemos edições patrocinadas (lembro-me de uma, toda dedicada à cor amarela, patrocinada pelo Cutty Sark, e outra dedicada a Lisboa, patrocinada pela Mundicenter/Amoreiras, entre outras).
… Mas também acho que há limites. As primeiras páginas de hoje dos principais jornais diários ultrapassam claramente os limites do saudável convívio entre anunciantes e meios de comunicação. Apesar da indicação “pub”, o que se vê nas bancas são jornais com manchetes e noticias dedicadas a um banco, e outdoors com os mesmos jornais e as mesmas manchetes como se fossem efectivamente as noticias do dia. Ultrapassou-se o limite? Claramente. Não percebo como tal foi aceite por todos os meios. Não vale tudo para salvar um negócio em risco. Ou então vale - mas nesse caso está garantida a morte do próprio negócio. Como diz a Paula, não se pode ter o bolo e o dinheiro do bolo.
A memória de Eusébio que ontem aqui deixei remeteu-me para um tempo profissionalmente feliz, que correspondeu também ao tempo de todas as esperanças em Portugal. Estávamos em 1997. Portugal viveu a ilusão da convivência mais improvável: a que nos trazia do passado Eusébio, mas também Amália, ou empresários com o espirito de Ricardo Espirito Santo - e depois o presente, que eram travessas de dinheiro quente da Europa, e ainda um futuro em que seríamos certamente ricos como os alemães, educados como os suíços, e divertidos como os espanhóis. Nada disso aconteceu. No momento em que morre Eusébio, vejo na sua anunciada morte - que me deixa lágrimas nos olhos por comover todo um país, e boa parte do mundo, e garantir ao Benfica um legado eterno - um sinal do tempo que vivemos. Um tempo em que os mitos se esfumam, os heróis passam de humanos a estátuas, e a esperança se desfaz em pó. Resta a vontade e o sonho. E eu faço parte dos que ainda têm vontade e sonhos. Mas não deixo de associar a tristeza pela morte de Eusébio a este demasiado longo Inverno que vivemos sem dó nem piedade. Se vivesse na pequena aldeia gaulesa, perguntaria quando é que o céu nos cai em cima da cabeça. Como não vivo, adopto a pergunta antiga da TV: que mais nos irá acontecer?
- O meu único vicio é o Benfica. E, às vezes, por causa do meu Benfica, sinto a máquina a falhar. Quando chegar o meu dia que seja ali no Estádio. Gostava de morrer no Estádio da Luz? - Se me dessem a escolher gostaria de morrer ali. É uma casa que me fez homem, onde eu estou desde os 18 anos. Nós não escolhemos, mas eu gostava… E já agora num jogo de emoção e com uma vitória do Benfica. Pensa muito nisso? - Há uns anos tinha medo da morte, agora já não.
DNA, 13/Set/1997 Entrevista de Luís Osório e Pedro Rolo Duarte
Engoli as 12 passas, pedi os desejos do costume, brindei com o champanhe de sempre. Entre amigos, à mesa, pela noite dentro, até tarde. E acordei sem efeitos secundários violentos, ainda que um pouco “abazurdido” (para citar João Braga…). Entrei bem num ano que quero melhor, farei para que seja melhor, mas tem tudo para não ser muito diferente do ano que passou. Divido-me entre o optimismo e o realismo, e persisto em caminhar no fio da navalha. Como sempre, também, no ultimo dia do ano velho, consultei o I-Ching, livro de que gosto por razões mais filosóficas do que esotéricas, e que me acompanha há muitos anos. O I-Ching sugeriu que em 2014 eu fosse mais diplomata, menos impulsivo, e que apostasse na mudança. Tudo o que já queria fazer antes de consultar a clássica obra. Parece que se encontram fios soltos e pode fazer sentido o quadro que desenho. Venha lá então o 2014 - eu aguento, e resisto.
(A imagem foi tirada do maravilhoso Corto Maltese na Sibéria.)
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
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