Quanto era adolescente, o meu pai entrava no meu quarto por um de dois motivos: para reclamar a máquina de escrever que lhe tinha subtraído para fazer os meus “jornais caseiros”, ou para dar um grito e jurar que nunca mais entraria no quarto enquanto não o arrumasse, arejasse, e garantisse que desaparecia aquilo a que chamava de “pivete” (soma de cigarros fumados, garrafas de cerveja vazias, e hormonas aos saltos, se me faço entender…). Nesses momentos, com receio de retaliações com maior impacto no dia a dia, eu arrumava o quarto obedecendo ao seguinte “programa de assistência preguiçosa”:
- Cinzeiros limpos e passados por água - Roupa suja atirada para debaixo da cama - Papeis em pilhas junto à mesa de trabalho
- Garrafas vazias no lixo - Porta da varanda aberta durante uma tarde inteira - Umas folhas de eucalipto (que a minha mãe apanhava no Penedo e deixava secar) queimadas num defumador que deixava um cheiro bom e saudável no quarto
O programa normalmente dava certo - ainda que geralmente resultasse num segundo assalto: o momento em que eu reclamava pela falta de roupa lavada e lá se descobria que estava toda debaixo da cama, por lavar e engomar.
Voltava a levar na cabeça, claro, mas sempre podia dizer "siga!" sem receio de maiores problemas.
E era isto porquê? Bom, era isto para dizer que este Governo, e a sua relação com a troika e os credores, me lembra a minha adolescência mais que patética. Atira o Carnaval para debaixo da cama, como se não existisse mais, maquilha as contas públicas para manter, na essência, o mesmo quadro de miséria de despesismo publico e contratações amiguistas, e brinca com a governação como se não houvesse amanhã. O problema é que vai haver amanhã. E vai doer.
Na minha adolescência, era comigo e com os meus pais. Agora, é com eles e connosco. É com todos.
Ora cá estão os dois “marretas” que há cinco anos se encontram semanalmente para tentar fazer duas horas de rádio com assinatura, sem perder a humildade; e com sentido, sem perder o humor. Ontem foi especial - era dia de anos, era dia de sair do casulo e dar a cara. Neste caso, no (muito bem) renovado Mercado de Campo de Ourique. Sempre sob o olhar vigilante e atento da Joana Jorge, e com o contributo rico do saber de Henrique Cayatte - designer, ilustrador, aqui mais na qualidade de “campo d’ouriquense” apaixonado pelas cidades e pelas pessoas. Foi uma belíssima conversa - por causa dele, por conta dele. E ver amigos passar por ali, fosse a Sofia Rato ou a Patricia Muller, fosse o meu próprio filho ou um ouvinte anónimo, tem o sabor doce que nos faz sentir em casa. Por mim, confesso: ao vivo e a cores, em directo, a emissão perde alguma da intimidade que o marca. Mas, por outro lado, ganha nos olhares que se cruzam e que dão sentido ao nosso trabalho, e na dinâmica que transforma comunicação fechada em diálogo aberto. No balanço, ficam ela por ela, ou ele por ele, para ser rigoroso. São programas diferentes, mas não deixam de ser o mesmíssimo Hotel Babilónia que jamais pensei (acho que posso dizer pensámos, falando pelo João) que ganhasse a dimensão e o alcance que estes cinco anos têm mostrado. Fizemos por isso, acho - mas tivemos a felicidade de ter quem nos ouvisse para isso. É o que conta. Sábado que vem, o Hotel volta ao seu registo habitual. Mas na minha cabeça, o que fica de mais esta jornada é isto: a rádio é mesmo um amor para a vida. E quem a faz com esse amor incondicional tem a recompensa maior - que é ser amado. Como dizia a Patricia, que não faltou à chamada, “ama quem te ama”. Está certo. E assim vai continuar.
(a fotografia é da Joana Jorge, foi ligeiramente editada no iPhoto)
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
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