(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman. A edição deste mês, cheia de amor e namorados, já está nas bancas. E está muito bem!)
Para escrever a crónica que está a começar a ler, tive de fazer o mesmo exercício de sempre, pela ordem habitual: apontar na agenda (em papel…) “escrever crónica Lux Woman”, marcar o dia em que a ela me começo a dedicar, e depois passar os olhos pelos cadernos onde tomo noto de ideias que vou tendo ao longo do mês. Por fim, escolher o tema que me parece mais interessante, e fazer um primeiro rascunho. Como geralmente escrevo à noite, imprimo o rascunho e deixo-o em cima da mesa com a nota “ler e editar”. Não sigo este processo por ser um profissional rigoroso ou por falta de dedicação - faço-o porque é a única defesa que tenho contra a minha crónica falta de memória. Escrevo tudo o que faço, penso, ou tenho de fazer, e há anos que sigo regras apertadas para não falhar. Antes de me deitar, anoto num bloco o que tenho de fazer no dia seguinte - isto independentemente de ter uma agenda onde também sublinho os compromissos já assumidos. O facto de ter rotinas - uma crónica mensal, uma aula semanal, um programa de rádio ou televisão - não melhora as coisas: se eu não escrever, não apareço, ou lembro-me no ultimo minuto. A minha memória é galinácea desde os tempos do liceu, e tem piorado com os anos. Ampliou-se para campos pouco educados: os nomes e as caras das pessoas, o que fiz na semana passada ou, no limite, disse ontem. O que resulta desta condição é, por um lado, muito tempo perdido a tomar nota de tudo - e por outro, uma montanha de equívocos que às vezes desaguam no mar das considerações infelizes sobre a minha pessoa: o tipo tem a mania, é presumido, fez de conta que não me conhecia, etc.. Como é de calcular, o tema “memória” interessa-me (nem que seja para recordar o peixe Dory, do filme Nemo…). Sempre que se fala da “memória curta” dos portugueses, respiro fundo: essa memória curta que nos leva a repetidamente votar naqueles que tantas vezes nos enganam, felizmente não se abate sobre mim. Um dia li uma crónica do Miguel Esteves Cardoso que quase me reconciliou com a deficiência: o Miguel escrevia que “o amor e a memória conspiram juntos. É por não nos conseguirmos lembrar de quem amamos que temos de estar sempre junto dela. A olhar para ela. Cada vez que a vejo sou apanhado de surpresa”. Muito romântico, sem duvida. Durante alguns minutos achei que, afinal, estava certo. Mas depois cheirou-me a queimado na sala e percebi que tinha deixado estorricar uma carne que estava a assar no forno. Esquecimento. Foi-se o romantismo. Agora, há poucas semanas, tudo mudou. O jornalismo já me tinha ensinado que há sempre duas formas de observar qualquer tema, e que a dicotomia bom/mau é demasiado redutora para resolver a vida. Mas foi preciso uma ideia radical para me acordar para o lado bom desta realidade. Passou-se nas páginas do jornal “Pùblico”, numa entrevista de Isabel Lucas a António Lobo Antunes. Às tantas, fala-se da memória e o escritor tem esta tirada absolutamente surpreendente: "A minha memória é terrível. Tenho uma memória péssima, lembro-me de tudo. Parece aqueles tecidos a que se pega tudo”. Fiquei varado. Paralisado. Sem reacção. Nunca me ocorrera essa variante: lembrarmo-nos de tudo pode ser ainda pior do que não nos lembrarmos de nada! E não é que é verdade? O facto de me esquecer, em muitos casos, alivia. Desculpo, perdoo e relativizo com enorme facilidade, não tenho muito tempo para remoer nos factos. Desaparecem. Esfumam-se. Morrem. Aos poucos, recuperando o fôlego, comecei a pensar pela cabeça de Lobo Antunes e a tentar imaginar o que seria se tivesse uma excelente memória. Não demorei muito a fazer as pazes com a minha condição e começar, por fim, a dar-lhe algum valor. É verdade: viver com memória de galinha dá trabalho e obriga a uma ginástica cansativa - mas, por outro lado, livra-nos de tanto lixo, tanta irrelevância, que nos liberta para a paz de espírito. E foi graças a António Lobo Antunes (cujo primeiro livro, nem por acaso, se intitula “Memória de Elefante”…), que percebi que certos defeitos podem num ápice passar a qualidades. Só espero não me esquecer da frase dele. Vou já tomar nota: “Tenho uma memória péssima, lembro-me de tudo”. Era assim, não era?
"Mais Novos Que Nunca" é o mais novo dos meus projectos.
Por enquanto é apenas uma imagem.
Dentro de dias é um retrato de uma nova maneira de ver a vida e de viver a vida. Dando a volta ao mundo ou fazendo voluntariado. Arriscando viver, em vez de ficar sentado a ver. Ousando ser feliz, em vez de repetir os modelos que invariavelmente conduziram à infelicidade.
Parece um anúncio? É um anúncio. "Mais Novos Que Nunca" vai ser um programa de rádio. Na rádio que faz sentido: a de serviço público. Em rigor: as de sentido público. Antena 3, Antena 1. Não tarda e vai ser o que agora só parece.
Para o que aqui me traz, é indiferente se o Syriza é de esquerda ou extrema-esquerda, se vai dar cabo da frágil estrutura que sustenta a União Europeia, se a Grécia vai ou não pagar o que deve. Para o que aqui me traz, interessa isto: enquanto nós, em Portugal, dizemos mal dos politicos por grosso e sem medida - gritamos que “são todos iguais”, que “andam cá todos ao mesmo”, “que é só servirem-se” e outras bojardas do mesmo nível -, mas depois, quando chega o dia, encolhemos o rabinho entre as pernas e votamos ora num ora noutro partido do centrão, com meia-dúzia de votos distribuídos pelos restantes; enquanto isso, na Grécia, os eleitores têm a capacidade de arriscar a mudança, por mais populista que seja, por mais que o voto constitua não mais do que um protesto. Este é o facto: em vez de fazerem conversa de café, mudaram mesmo. Votaram. Decidiram. Deram sentido à palavra democracia. É muito provável que em breve estejam arrependidos - mas não poderão dizer que não tiveram a coragem de ousar a alternativa. Como diria o meu filho, “é de valor”. Hoje, eu sou grego.
"Por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia que não pára de mudar de direcção. Tu mudas de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de ti. Voltas a mudar de direcção, mas a tempestade persegue-te, seguindo no teu encalço. Isto acontece uma vez e outra e outra, como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer. Porquê? Porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada, sem nada que ver contigo. Esta tempestade és tu. Algo que está dentro de ti. Por isso, só te resta deixares-te levar, mergulhar na tempestade, fechando os olhos e tapando os ouvidos para não deixar entrar a areia e, passo a passo, atravessá-la de uma ponta a outra. Aqui não há lugar para o sol nem para a lua; a orientação e a noção de tempo são coisas que não fazem sentido. Existe apenas areia branca e fina, como ossos pulverizados, a rodopiar em direcção ao céu. É uma tempestade de areia assim que deves imaginar. (...) E não há maneira de escapar à violência da tempestade, a essa tempestade metafísica, simbólica. Não te iludas: por mais metafísica e simbólica que seja, rasgar-te-á a carne como mil navalhas de barba. O sangue de muita gente correrá, e o teu juntamente com ele. Um sangue vermelho, quente. Ficarás com as mãos cheias de sangue, do teu sangue e do sangue dos outros. E quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver. Nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim. Mas uma coisa é certa. Quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa. Só assim as tempestades fazem sentido". Haruki Murakami, in 'Kafka à Beira-Mar'
Toda a gente acha que o Fernando Alvim é um “ganda maluco”, e há mesmo quem o menospreze ou desconsidere, pelo lado mais caótico com que organiza e vive “as suas cenas” - mas todas essas pessoas estão efectivamente erradas. Com o grau de loucura que faz das pessoas normais pessoas interessantes, o Fernando, com o maior ou menor correria, mais ou menos caótico, atrasando-se permanentemente - mas por fim chegando -, organiza e produz dezenas de eventos que lhe dão prazer antes de lhe darem dinheiro. Faz televisão, rádio, revistas, livros, e nunca esmorece. O Alvim acrescenta qualquer coisa ao nosso mundinho molengão, enquanto aqueles que dizem mal dele estão no sofá a fazer nestum. Eu sou dos que gostam do Fernando Alvim e acham que mais Alvins faziam falta ao Portugal que diz mal de tudo e não se mexe um centímetro. Por isso, sempre que posso e ele desafia, alinho. Ontem fui ao evento “Portugal, Quem és tu?” (que ainda decorre hoje, é gratuito, no Pavilhão do Conhecimento, no Parque das Nações, até às 23.00, de que é que estão à espera??…). Cada orador convidado tem 10 minutos para falar de Portugal e lançar ideias para melhorar o pedaço. Ouvi ideias interessantes, boas, outras menos, algumas sonolentas, algumas desafiadoras. É mesmo assim quando se ousa e arrisca. Podem seguir aqui, se acaso preferirem o sofá... Decidi falar sobre a mentira e a verdade, enquanto travão e motor de um país que só pode crescer quando soubermos ser sinceros e perceber o que está certo e errado no nosso universo. E para sair desse estado pantanoso de mentira, que cultivámos quase como virtude centenas de anos, defendi a educação, a formação, e dei o exemplo da experiência do meu filho na Austrália, e da integração e saudável conciliação que ali se faz entre escola e comunidade, entre o que se aprende e estuda e o que se dá para uma vivência comum. Não trouxe nenhuma ideia original, apenas o que resulta da minha experiência e da aventura que o meu filho viveu. Mas saí daquela sala feliz e com a sensação sempre gratificante de ter dado qualquer coisa a outros, sem nada em troca. E isso foi o melhor. Alvim, não desistas!
Já muito se falou sobre este projecto, esta exposição, mas só ontem tive oportunidade de a ver (obrigado Ana Rita Ramos). E rendi-me. E quero voltar. “7 Mil Milhões de Outros” é um encontro com a humanidade, com a diferença, com a proximidade. É a mais rigorosa tradução da frase “todos diferentes, todos iguais”. A partir de 6 mil entrevistas feitas por todo o mundo ao longo de 7 anos, com 45 perguntas iguais, em mais de 50 linguas diferentes, numa montagem temática que permite ao visitante ir saltando de tema em tema sem nunca se cansar, viajamos pelo planeta e conhecemos culturas, revimos dramas e alegrias, paixões e desilusões, preocupações e prazeres. Emocionamo-nos, comovemo-nos, rimos, sorrimos, aprendemos lições de vida, das mais simples às mais complexas. Durante um bocado, a nossa realidade reduz-se à insignificância de um ponto num Universo de sete mil milhões de pontos. Uma lição de humildade que saiu da cabeça de Yann Arthus-Bertrand, contagiou dezenas de colaboradores, e chegou a Lisboa por amor e paixão do Projecto Memória e das entidades que depois se lhe associaram. Montagens de video primorosas levam-nos pela cabeça de milhares de pessoas - e todas nos dizem respeito, mesmo as que parecem não nos dizer nada. Em cada palavra, um sentido. Em cada ideia, uma inquietação. Em cada desabafo, uma lição. Como se o Planeta fizesse o sentido que muitas vezes não lhe reconhecemos. Talvez faça, na verdade. Quando saí da exposição, parece que o mundo se tinha refeito e o meu lugar recentrado. E foi bom. (Até 8 de Fevereiro, no Museu da Electricidade)
Vivi intensamente esta semana em que todos fomos e somos Charlie. Pouco escrevi sobre o tema. Apenas um apontamento no Facebook, depois do desfecho de sexta-feira: “Quiseram morrer, morreram. Não tenho pena nem me entusiasma (concordo com o Miguel Esteves Cardoso no Público, como de costume). Porém, o facto de terem morrido não muda a sua condição: não vão ser heróis de qualquer pessoa de bem, qualquer que seja o credo. Serão para todo o sempre bárbaros assassinos”. E não consegui escrever mais nada. Não por não ter o que dizer, mas por sentir que todos dizem, todos falam - e no ruído não consigo distinguir o que faz sentido. Vivemos um tempo de barulho, confusão, ver quem se ouve mais alto. Parece que meio mundo procura captar a atenção do outro meio mundo. E todos querem dizer tudo em primeiro lugar. É fascinante, mas deixa-me muitas vezes atordoado e sem reacção. Leio os outros e sublinho aqueles com quem concordo. Prefiro seguir a repetir. Quanto me noto redundante, escolho o silêncio. Talvez seja por isso que me sinta bem junto ao mar: nunca se repete, mesmo que as ondas sejam sucessivas; nunca me cansa, porque nunca é igual; obriga-me ao silêncio não por redundância, mas pela diferença. Ainda é a diferença que me move e entusiasma.
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
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