(Crónica originalmente publicada na revista Lux Woman. A deste mês saiu hoje e está em grande...)
Quando comecei a trabalhar na rádio chamavam-se simplesmente “auscultadores”. Eram grandes, gordos, pesados, e não usarmos os que estavam dentro dos estúdios traduzia empenho mas também alguma vaidade. Empenho, porque significava que tínhamos gasto dinheiro a comprar uns auscultadores pessoais, e que tínhamos gosto em ouvir o som com a qualidade que o nosso investimento permitia - e vaidade porque estávamos “armados em bons” a fazer mais do que nos era pedido. Que era apenas anunciar os discos e passá-los. Depois apareceu o “Walkman” e com ele os “headphones”. E mais tarde o “iPod”. Rapidamente, tudo mudou: a correr, a andar, a passear, no metro, no comboio, em todo o lado as pessoas ouvem musica. Escolhem as suas canções, a sua rádio, as listas e sequências preferidas, e ouvem, ouvem, ouvem. Ouvem sem ouvir mais nada à volta. Para o fazer, isolam-se num casulo a que hoje chamamos apenas “fones”, assim mesmo, com “f”, cápsulas que enfiamos nos ouvidos ou auscultadores na versão suave, leve, e de alta qualidade. Nos escritórios as pessoas trabalham com “aquilo” nos ouvidos, em casa há familias que não se ouvem porque cada uma anda com o seu som pessoal enfiado na orelha. Devo estar, mais do que velho, acabado: não consigo viver com auscultadores na cabeça. Claro que os utilizo na rádio, claro que preciso deles quando quero escolher musica e estou entre pessoas que, num espaço partilhado, os outros não têm de levar com as minhas pesquisas. Mas fora a utilização profissional, incomoda-me a ideia de ter nos ouvidos algo que me afasta do mundo à minha volta, que me “desliga” da realidade sonora, e que no limite pode impedir-me de ouvir a buzina do carro que ameaça atropelar-me. Esta democratização total dos “fones” - não há telefone comprado que não ofereça um par de coisas daquelas - torna-nos não apenas surdos, mas acima de tudo ainda mais solitários, sozinhos, num mundo fechado onde só nós próprios cabemos. Deixámos de ouvir os sons do mundo que nos rodeia, deixámos de ouvir as queixas da vizinha do lado no metro, deixámos de ouvir a vida - para ouvirmos apenas o que escolhemos e nos embala, nos faz sonhar, nos leva ao colo, ou nos deixa entregues a terceiros. Às vezes, no local onde habitualmente trabalho, e onde mais gente trabalha num sistema saudável de coworking, preciso de usar os auscultadores. Sempre que o faço, há um sentimento incómodo que se apodera de mim: parece que tenho um sentido a menos. Como se me faltasse algo essencial, sei lá, o cheiro, o sabor, o olhar. Não ouvir o que me rodeia é um pouco como ter o nariz entupido - com a vantagem de ter musica escolhida para ouvir, e a desvantagem de não ter razão para ter o nariz entupido. Pode ser, será seguramente, um sinal dos tempos. Mas os ouvidos “entupidos” por uns “fones”, por melhor que seja a musica escolhida, parece-me sempre um paradoxo do tempo. Nem que seja pela razão essencial: quando descubro uma canção de que gosto, o que mais quero é partilhá-la com quem me rodeia. Se a oiço sozinho, no meu casulo, na minha capsula, no meu compartimento, estou a negar-me e a contradizer-me. Não nasci para essa solidão asfixiante. Será por isso que persisto em chamar à rádio o “grande amor” e não me passar o “bichinho” que todos os que por ela passam dizem também senti-lo? Ou estarei a viver num passado onde não faz mais sentido a pergunta “queres ouvir?”?
Desta vez foi para o Notícias Magazine. já saiu. Assim:
De carácter pessoal…
Idade…? 50 Curso…? O da vida. Primeiro emprego…? A escrever sobre rádio no extinto jornal Sete. Melhor emprego…? Nunca tive. Tive sempre trabalho e belos projectos. Entre a Kapa e o DNA, um deles terá sido o melhor. Hobby? Cozinhar. Ou melhor, aprender a cozinhar. Máxima de vida…? A seguir vem melhor. Nunca deixa em casa…? Os sonhos por cumprir.
Da vida mundana… Cor…? Azul Calçado favorito…? Favorito é mais descalço, pé na areia. Peça de vestuário…? Calções de banho. Animal…? Gato. Música para energizar…? Happy, “Because I’m happy Clap along, if you feel like a room without a roof” Transporte de todos os dias…? Ainda o carro. Cada vez mais o metro.
Do mundo do trabalho… O maior desafio…? Resistir ao tempo que vivemos no mundo dos media. Não fosse jornalista e era…? Cozinheiro. Habilidade inata…? Dormir. Momento de viragem…? O dia em que o DN me dispensou. Experiência memorável…? O dia em que nasceu o DNA. Ideia(s) no horizonte…? Era o que faltava, revelá-las… Projecto que lhe encheu as medidas…? O Independente, a Kapa, o DNA.
Dos gostos… Álbum para ouvir sem freio…? Qualquer um de David Sylvian. Filme…? Qualquer um de Woody Allen. Actor…? Robert de Niro. Actriz…? Michelle Pfeiffer. Realizador…? Coppola. Museu…? Moma. Livro de cabeceira…? Até ao fim e Para Sempre, ambos de Vergilio Ferreira. Peça de teatro…? Portugal nos dias que correm. Série de culto…? Downton Abbey, que destronou Sete Palmos de Terra.
Das viagens… A mais surpreendente…? Todas as viagens interiores. A mais desejada…? As que farei com a Andreia. A que ainda não fez…? As que sonho com a Andreia. Sabor que lhe traz mais saudade…? Ostras no sul de França. Cidade para viver…? Não é cidade, mas conta: Melides. Com ponte aérea para Lisboa, sempre. Lugar a visitar vezes sem conta…? Buenos Aires, porque ainda não fui…
Do mundo dos media Programa de televisão…? De momento, nenhum me prende. Só algumas séries. Programa de rádio…? “David Ferreira a Contar”. Blogue a seguir religiosamente…? O marginal ameno (http://omarginalameno.blogs.sapo.pt/). DNA…? Eu queria. Leituras obrigatórias…? Monocle, Saveur, Vanity Fair. Melhor informação…? A da rádio, em geral. A da Antena 1, em particular (ainda que esta opinião seja viciada e suspeita!). Contrainformação…? A que mistura negócios, interesses, política, e alguns jornais. Não perde por nada…? Tudo o que faz o Ricardo Araujo Pereira, tudo o que escreve o Miguel Esteves Cardoso, tudo o que pensa o Vasco Pulido Valente.
... Pelas 10 da manhã, na Antena 3. Ou amanhã, segunda, depois das 23:00, na Antena 1. Este "Mais Novos que Nunca" está a correr bem, tem histórias e ideias, pessoas e inspirações.
Cito-me: "Uma hora para conhecer histórias, pessoas, ideias, sempre à volta de um mesmo caminho: o que sai fora da estrada normal da vida e encontra destinos novos, inovadores, nem que seja apenas renovados.
Uma hora para reconhecer que o Mundo pode ser diferente, e melhor, quando se passa da ideia à acção, quando se acredita que um pequeno passo de cada um pode ser um grande passo para a humanidade. Foi assim que o homem chegou à Lua - e é assim que as pessoas que passam por este estudio vivem, criam, inventam, produzem.
Uma hora para acreditar que não estamos condenados a uma vida cinzenta, sem sonhos nem ideais, sem um crédito suplementar naquilo que nos move. Ou nos comove. Afinal, como dizia alguém, o coração não serve apenas para bombar sangue - e é por esse caminho que vamos, todas as semanas, nas antenas da rádio pública".
A minha mãe telefonou-me ontem (ou há dois dias...) e só se lembrou de uma das duas razões pela qual o fez. Anda preocupada com isto, porque a irrita, aos 84 anos, ter falhas de memória. E indignou-se com a circunstância. Eu também me esqueço de tudo, e nestas ocasiões lembro-me sempre de responder com um exemplo meu. De há bocado. Sublinhando que tenho 50 anos, menos 34 que ela. No caso, contei-lhe que tinha combinado um encontro exactamente no mesmo horário a que dou aulas na Restart. As aulas estão marcadas há muitos meses. E eu sabia. E estava escrito na agenda. Ainda assim, combinei… Pois bem. Na sequência desta crónica e deste post, e de dezenas de outros que tenho dedicado ao tema (como se vê, preocupa-me…), veio a Joana Jorge dizer-me que, no fundo, talvez eu fosse uma pessoa de vanguarda. Na medida em que a Internet (e especialmente o Google) tiram na hora qualquer dúvida que a memória não esclarece ou ilumina, podemos dispensá-la de vez e ocupar essa parte do cérebro com outras preocupações, temas, ideias. De momento, não me ocorre nenhuma. Mas é sempre bom pensar que podemos estar à frente. Tal como os nossos membros se desenvolveram em função das necessidades que fomos tendo, também algumas características podem mudar em função das facilidades que se nos colocam à frente. Se calhar, daqui a 500 anos a memória individual está limitada aos sentimentos, cheiros, ao que é sensorial e realmente relevante. O resto consulta-se na rede, na nuvem, na palma da mão. Se assim for, eu terei sido pioneiro. Não me serve de nada nos dias que correm, mas sempre é uma esperança. Estou mais animado.
O melhor da vida é mesmo o que se não espera. E foi o que me aconteceu, felizmente alguns dias antes do dia dos namorados, data/festejo com que sempre embirrei (por me parecer uma espécie de noivas de Santo António, sem o piroso da coisa, mas com o comércio que as sustenta…). Então foi um livro. Novinho em folha. Com uma vantagem sobre os restantes livros existentes à face da terra: só para mim. Talvez haja melhor do que um livro escrito só para o leitor que o lê - mas assim, de repente, não me ocorre. Assim fica.
Comecei a ouvir rádio num aparelho parecido com este, em casa dos meus pais. Tinha uma tampa em cima, que abria e revelava um gira-discos onde ouvi os primeiros singles da minha vida: George Harrison e Tonicha, Paulo de Carvalho e Mini-Pop, a Pandilla e Beatles, para verem como era um rapaz de gostos diversificados. Talvez demais, mas enfim… Como os singles eram poucos, a rádio era quase tudo. Ouvia os programas do Julio Isidro, do Luis Filipe Barros, do Jorge Pego, do João David Nunes, da Maria José Mauperrin (mesmo quando percebia pouco do que eles por lá diziam…). Ouvia os Parodiantes, apesar de não lhes achar graça. Ouvia “o que dava na rádio”. E sonhava com o dia em que fosse a minha vez. Quis o destino - e o Rui Pego, e o Henrique Mendes… - que fosse em 1984, na Rádio Renascença. 31 anos depois, a mesma paixão, o mesmo amor, o mesmo fascínio. A “docemania” de que falava José Nuno Martins. Mudou tudo, não mudou o que se sente quando se abre um microfone e se tem o mundo pela frente. Talvez por isso este Dia da Rádio me diga pouco - porque para mim não há Dia, todos são os dias.
Um começo que me deixou um nó na garganta, por um lado, e um imenso mar de felicidade: o novo “Mais Novos Que Nunca” tem histórias inspiradoras, pessoas que nos obrigam a pensar no que andamos por cá a fazer, e um verdadeiro serviço público de rádio. Não imaginava quão feliz podia ser com este programa. Mas sou. Estou. A lamuria nacional, o queixume, o dizer mal por dizer mal, a amargura que resulta da solidão, o ressaibamento que é apenas mau-viver - a tudo isto respondo com estes exemplos. Não me perguntem se estou bem - porque a resposta a essa pergunta é uma hora de rádio que vale por ser inspiradora, por ser exemplar, e por provar que a vida é bem mais do que viver no Facebook a dizer mal dos outros ou fazer de conta que se sofre por nada se querer realmente fazer. A vida é mais.
Passo a vida, entre amigos, a falar dos presentinhos que a vida nos deixa cá dentro, adormecidos, fechados, embrulhados - e que se desembrulham e ganham vida própria sempre que os dias nos confrontam com situações semelhantes, ou que recordam momentos vividos, ou convocam sentimentos que nos parecem familiares. E há coincidências do caraças. Ontem, dia 5 de Fevereiro, vi na televisão um filho chorar e indignar-se e revoltar-se com a morte da mãe, com pouco mais de 50 anos, neste estranhíssimo e pouco recomendável episódio dos doentes de hepatite C e do medicamento caríssimo que seres humanos decidem não ministrar a outros seres humanos. Não vou comentar o triste quadro e tudo o que ele significa. Mas, não tendo qualquer relação, lá se abriu um presentinho guardado cá dentro. No mesmo dia 5 de Fevereiro, data que parece sempre um neon aceso na minha cabeça, em 1987 (há 28 anos, portanto…), o meu pai morria no Hospital de Santa Maria, na sequência de um silencioso e fatal enfarte do miocárdio. Na véspera, 4 de Fevereiro, à noite, depois de trabalhar, e por não se sentir bem, passou pelas urgências do mesmo Hospital. Apanhou um estagiário de serviço, que sumariamente diagnosticou excesso de trabalho, stress, e sugeriu que tomasse uma aspirina e dormisse. Assim aconteceu. Quando acordou, o meu pai sentiu-se pior, o quadro não tinha mudado, foi pelo seu pé ao Hospital Pulido Valente, depois de ambulância para Santa Maria, e aconteceu o que se sabe que aconteceu. Na altura também pensei em mover uma acção contra o Hospital, procurar responsabilidades (ainda guardo um papel qualquer com a assinatura do médico), transformar a dor e o sofrimento num gesto de indignação e revolta. Talvez o devesse ter feito. Mas não fiz. Conformei-me com o mais linear e objectivo dos factos: nada devolveria a vida ao meu pai, nem a alegria às vidas de quem o amava. Era argumento suficiente para o recato e a procura demorada da paz possível. Ontem, quando vi na televisão a revolta do filho que perde a mãe por falta de um medicamento que a poderia ter salvo, pensei na ironia parva deste encontro de datas, na memória que subtilmente me acompanha - como um ferrão espetado na carne -, e na circunstância de tudo ocorrer no momento em que, emocionalmente, sou por fim feliz e encontro a paz que tanto procurei. No confronto de todos estes sentires do sentir, não consigo ir mais longe do que isto: o problema de viver não está tanto no verbo, como está naqueles que, além de nós, o podem conjugar. Seja o médico que infelizmente mandou o meu pai para casa, ou na A. que felizmente deu de novo sentido à minha vida. Não estamos sós, e é isso que encaixa ou desencaixa os dias que vivemos. Há 28 anos, sentia a mesma revolta daquele filho que vi na televisão. Hoje, prefiro a memória do meu Pai vivo, do seu humor, do seu talento, da sua dedicação aos que o rodeavam - e convoco tudo isso para o amor que vivo, como já merecia há muito tempo. Há presentinhos que ainda se abrem, mas já não conseguem vencer-me. Ou como cantava a Elis: “vivendo e aprendendo a viver”.
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
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