Memórias que o Facebook recupera
O meu nome num link, um post de alguém - e eis-me, às tantas da manhã, frente a esta crónica de Eduardo Prado Coelho nas páginas do Público (“Fio do Horizonte”). Algures no começo de 2006. Não me lembrava, nem lá chegaria. Mas ainda bem que me fizeram chegar:
Texto: "Parece que já foi há nove anos que Pedro Rolo Duarte inventou um suplemento do Diário de Notícias para sair ao sábado: o DNA. O título jogava com a abreviatura do código genético e ao mesmo tempo com as próprias iniciais do DN. Eu tinha tido uma polémica violenta, mas supérflua, com Pedro Rolo Duarte no âmbito da Visão. Confesso que já não me lembro porquê. Contudo, há uma coisa que tenho procurado ao longo da vida: os conflitos pessoais anteriores não devem de modo algum condicionar a pureza do nosso olhar sobre as coisas. Se achamos mesmo bom, devemos dizer que é bom. E é tudo. Os ódios vesgos que envenenam quem os tem e aqueles que deles são objecto devem ser cuidadosamente evitados. E eu gostei do DNA. Muito.
Não são assim tantos os casos de efectiva invenção na imprensa portuguesa para que a gente se possa dar ao luxo de os ignorar. É verdade que existe sempre uma alma caridosa que virá dizer que encontrou na Austrália ou na Patagónia uma publicação que claramente influenciou a publicação portuguesa. E diz isso com aquele regozijo que faz que os portugueses sejam pouco dados ao exercício de gostar. A má-língua, o escárnio e mal-dizer sobrepõem-se sempre à euforia da descoberta. E eles coleccionam com mais facilidade as reservas do que são capazes de apreciar os méritos. É aquele tipo de lucidez que não consegue ver em relação a si que o excesso de lucidez é um excesso de estupidez. Alguns cronistas e comentadores fazem disso alimento. Mas o lado corrosivo do cinismo só se tempera com alguma inocência: e digo "gostei", "gostei muito".
E agora? No âmbito da remodelação gráfica e de conteúdo do Diário de Notícias o DNA acabou. Não sei o que é que o vai substituir. Talvez seja uma criação genial. A ver vamos. Mas a verdade é que quando vejo também que a Grande Reportagem desaparece e que a revista Ler do Círculo de Leitores, dirigida por Mafalda Lopes da Costa, passa a ser anual (!) como o Borda d"Água, há uma enorme tristeza que me invade. Que fazer?, parece que sou irrecuperavelmente nostálgico. Mas custa-me que sejam devoradas pelo tempo publicações que faziam parte dos meus hábitos de leitor voraz e atento. Tenho a sensação de que o mundo fica mais deserto, e que aqueles que gostam de escrever, de fotografar ou de desenhar cada vez têm menos espaços disponíveis.
O DNA tinha uma enorme qualidade: era como um planalto onde o vento nos enchia os pulmões, era um lugar relativamente distanciado do mundo onde apetecia respirar. Não há nada como uma forma de jornalismo que nos dá outro modo de respiração. Inspire fundo. Diga DNA. Havia os editoriais de Pedro Rolo Duarte com os quais nem sempre estava de acordo, mas que lia sempre com prazer. Havia as entrevistas belíssimas de Anabela Mota Ribeiro e de Carlos Vaz Marques. Havia as extraordinárias fotografias de Augusto Brázio ou de Jorge Nogueira (o DNA habituou-nos a olhar para as imagens na imprensa diária). Havia a colaboração regular de alguém cuja personalidade se impunha: Camila Coelho, pseudónimo de uma escritora portuguesa. Havia as intervenções estimulantes de Carlos Oliveira Santos. Havia as excelentes reportagens e crónicas de Sónia Morais Santos. Pedro Mexia escreveu aqui as suas primeiras críticas antes de passar para quase todas as secções do jornal. Havia alguns textos perturbadores de Luís Osório. E assim por diante. Tudo isto já não há. Lamento.”
O que dizer? Como transmitir a comoção e o orgulho?
Lembro-me que, tempos depois, já o Eduardo estava doente, fomos ambos convidados a apresentar um livro do Augusto Brázio. Nesse momento, não resisti a recordar a nossa polémica e o facto de haver um fotógrafo notável que, para lá do que nos afastava, nos juntava na mesma mesa. Mas o Eduardo, obviamente mais sábio e inteligente do que eu, não deixou de me responder algo como “penso que está desactualizado: já nada nos afasta”.
Tinha razão. Tinha toda razão. Dez anos depois, pela via ínvia do Facebook, volta a estar certo: “era como um planalto onde o vento nos enchia os pulmões, era um lugar relativamente distanciado do mundo onde apetecia respirar”. O ar continua a faltar-nos tantas vezes.