Foi lá que encontrei esta pérola de um poeta que conheci pelos olhos da minha mãe e que, apesar de pouco considerado ou reconhecido, gosto e leio com prazer.
Nunca me deu para a poesia, mas se desse seria por aqui que andaria...
E agora vou dar um mergulho.
Pequena Elegia Chamada Domingo
O domingo era uma coisa pequena. Uma coisa tão pequena que cabia inteirinha nos teus olhos. Nas tuas mãos estavam os montes e os rios e as nuvens. Mas as rosas, as rosas estavam na tua boca.
Hoje os montes e os rios e as nuvens não vêm nas tuas mãos. (Se ao menos elas viessem sem montes e sem nuvens e sem rios...) O domingo está apenas nos meus olhos e é grande. Os montes estão distantes e ocultam os rios e as nuvens e as rosas.
(Eugénio de Andrade, "Poesia e Prosa [1940-1980]")
Há anos que não vou ao Coliseu, porque me cansei de me sentir figurante gratuito (e obrigado a filas e horários e lugares...) numa festa de outros. Mas sou grato aos Globos de Ouro, e à Caras, pelas 4 nomeações que recebi ao longo destes anos. E se ontem pudesse ter decidido atribuir um prémio, era mesmo para esta Capicua (nomeada) e para este tema (não-nomeado).
Todos os anos, no dia 1 de Abril, apesar de ser dia das mentiras, eu e a Sónia Morais Santos trocamos nem que seja uma SMS muito verdadeira: faz anos que começámos a trabalhar juntos (ela jovem jornalista vinda duma rádio local), numa pequena empresa que produzia conteúdos e onde nasceu, mais tarde, o DNA. No ano que vem passam 20 anos sobre o dia em que a Sónia entrou pela primeira vez nos escritórios da Pretexto, ali ao Rato, tímida, de camisola com ursinhos bordados, e assustada com tudo, menos com a vida. Mas essa data é bem menos importante do que outra, que ocorreu quatro anos mais tarde: a mesmíssima Sónia, já então jornalista de pleno direito e parte integrante da equipa que fez do DNA o sucesso que ele foi, casava com o amor da sua vida, o Ricardo, que conheceu ali nas escadas no DN. Eu vi aquele amor nascer e tive a felicidade de ser convidado para apadrinhar o casamento deles. Os anos passaram. Hoje, a Sónia Morais Santos é reconhecidamente uma talentosa escritora, jornalista, blogger e radialista. Tenho um orgulho infinito nela - e nunca deixo de referir o seu exemplo para testemunhar que neste mundo de merda há gente que sobe apenas pelo seu trabalho. A Sónia é um desses casos: respondeu a um anuncio que publiquei no jornal e foi escolhida por mérito, sem padrinhos nem apelidos. Chegou onde chegou exclusivamente pelo seu talento, paixão, dedicação, entrega - e seguramente, também, pelo amor do Ricardo e o equilíbrio que este feliz encontro lhe deu. Hoje, a Sónia e o Ricardo festejam, com os seus quatro filhos, família, e amigos, 15 anos de casamento. E fazem bem em festejar: não apenas é cada vez mais difícil ver casamentos durarem tantos anos, como raros são os que duram COM FELICIDADE DENTRO. É o caso. Não conheço nenhum outro casal, com menos de 50 ano, tantos anos tão consecutivamente feliz… Sou um padrinho desnaturado que liga pouco aos afilhados - mas vai sabendo, lendo, à distancia, por amigos, nem que seja num telefonema de meia-hora, de quando em quando, com a afilhada, o que a casa gasta. E sei que gasta dedicação, compreensão, humor, sentido de família, e acima de tudo, e à frente de tudo, um enorme, enorme amor. Repito: não sou um bom padrinho. Mas acreditem que tenho o maior orgulho em ser padrinho deste casal que me alimenta esperança, me inspira, e me convoca para o que quero também do resto da minha vida. Sónia e Ricardo: hoje, como há 15 anos, assino por baixo.
(A fotografia é de 1998, festa de aniversário do DN, se bem me lembro o namoro estava no começo, e eu andava fascinado com as máquinas digitais e fotografava tudo o que mexia. Eles mexiam…)
Quando, há um ano, decidi que seria eu próprio a tratar de levar o carro à inspecção obrigatória no seu quarto “aniversário”, avancei com segurança absoluta: não apenas o veículo estava em condições, como nem um sinal de alerta se manifestava dentro ou fora dele. Porém, no fim da inspecção, o carro “chumbou” porque a direcção não estava alinhada. Estranhei, mandei alinhá-la, voltei lá, paguei o suplemento respectivo, e fui à minha vida. Basicamente, perdi tempo, dinheiro, e um ansiolítico.
Mas desde esse dia que “não se me acaba o espanto” (expressão roubada, por isso entre aspas) com o numero de carros que vejo circular por aí sem piscas, sem sinais de stop, deitando fumo por tudo quanto é lado, com escapes rotos, enfim: em condições que obviamente pediam reparação, revisão, e chumbo na inspecção. Táxis incluídos. Leio agora no Público esta noticia que conta que, no Porto, “havia veículos que passariam na inspecção sem nunca entrarem no centro que os aprovava. A troco de umas dezenas de euros, os inspectores fechariam os olhos e tratariam da papelada sem que a viatura fosse sujeita a qualquer teste. A Polícia Judiciária (PJ) que investiga este caso há uns meses, efectuou esta quarta-feira uma operação no centro localizado na zona industrial do Porto. E deteve, em flagrante delito, nove inspectores que lá trabalham, indiciados pelo crime de falsificação de notação técnica. No centro do processo estão, contudo, suspeitas de corrupção”. É certo que estou em Lisboa e fiz cá a inspecção. Mas esta noticia deixou-me, uma vez mais, com a pulga atrás da orelha. Um otário nunca anda só. Ou nunca conduz só. Como queiram.
(Crónicas originalmente publicada na revista Lux Woman. A deste mês já saiu, está aí...)
Sou daqueles seres incuráveis que pertencem a um passado mais do que passado: ainda compro jornais diários em papel. Não há dia em que não pense no contra-senso de um produto que, no momento em que o adquiro, está dez horas desactualizado, e cujo conteúdo posso ter gratuitamente em várias plataformas. Mas compro na mesma. Entre outras virtudes - há algumas, apesar dos tempos… -, as edições em papel ainda têm o chamado “pequeno anuncio”. Porém, desde que a crise se instalou, reparo que boa parte do pequeno anuncio dos jornais é ocupada com comunicações sob a designação “Carta Fechada”. Titulo mais romântico seria difícil - mas de romântico não tem nada. São os anúncios das empresas falidas cujos bens se disponibilizam para compra através da tal “carta fechada”. Doeu-me o confronto entre a beleza da expressão “Carta Fechada” e a sua efectiva tradução. Por outro lado, senti que havia, ainda assim, algum sentido na potencial modernidade da ideia. Não vale a pena fugir: o tempo da carta morreu. Como do telex ou do telegrama. Quando temos cartas na caixa do correio, é quase sempre pelas piores razões: contas para pagar, avisos de suspensão do serviço, ameaças da Autoridade Tributária, convites despersonalizados para eventos a que não pretendemos comparecer. Vou mais longe: se nos aproximarmos da actualidade e entrarmos no mundo do mail, mergulhamos no universo negro da esquizofrenia postal. A sério: as finanças acham que as cinco da manhã de domingo constituem um bom momento para enviar mails devastadores, e há associações de pessoas que “gostam de ver aves” a usar listas de mails que incluem pessoas como eu, que sobre a palavra “ave” só me ocorre a bela perdiz com couve e feijão branco… O meu dia começa com a limpeza deste correio “mau”, numa espécie de atitude pro-activa que me lembra o anuncio que falava do “bate-escova-aspira”. Mais tarde, ao final da noite, volto à carga e repito a operação. A ideia de correio mudou de tal maneira que tenho a profunda convicção de que, nos dias que correm, a melhor forma de dar nas vistas, e ter alguma notoriedade numa mensagem que queiramos transmitir, passa de novo pelo velho processo da carta pessoal, de preferência escrita (ou pelo menos endereçada…) à mão. A essas eu ligo. Quem não liga? Um envelope com a letra trôpega, e a morada rasurada, deixa-me em pulgas - ao contrário de uma carta do Banco, que é quase sempre indiferente. Ou indesejada. Mesmo quando perfeita. E tudo isto vem da Internet e da mudança que operou na nossa forma de comunicar, viver, e até… amar. Penso muito sobre isso. Exemplo: temos agora um Papa modernaço e disponível para o debate. Mas ainda não vi ninguém chegar-se à frente com uma proposta que me parece não apenas ajustada como essencial. A saber: faz sentido, nos votos do matrimónio, falar na saúde e na doença, nos momentos bons e maus, e não ser ainda expresso algo como “com ou sem facebook”? Não adianta fugir com o rabo à seringa: a maioria dos divórcios já não tem a ver com saúde e a doença, ou a riqueza e a pobreza, mas com parvoíces no Facebook ou sms’s que revelaram mais do que deviam. Vamos fazer de conta que não existem? Vamos fazer anúncios a falar de “cartas fechadas”? Se a comunicação é a chave mestra dos dias de hoje, então as palavras têm quase força de lei. Está na altura de mudar discursos, titulo, definições e conceitos. Quando voltar a casar, gostava de dizer “prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, no Facebook e no twitter, no Instagram ou mesmo por mail, todos os dias da nossa vida, com ou sem roaming, e mesmo que não tenha rede ou bateria no telefone”. E se fosse possível, para voltar ao começo, também gostava que uma carta fechada não fosse mais do que isso: uma carta fechada à espera que o destinatário a abra. Como um jornal à espera de quem o compre. Ou um amor puro e sem intermediários. Talvez apenas sonhe com um tempo em que voltaremos a ser verdadeiros. Nos actos como, previamente, nas palavras que os antecedem.
A última vez que estive com ela foi há ano e meio, no enterro do seu amor, Rui Valentim de Carvalho. Gostava de Maria como se gosta de uma madrinha, ou de uma tia - alguém que está sempre perto mesmo quando parece longe. Fico triste com a sua morte, fico muito triste por não ter tido tempo de lhe dar um último abraço. Consola-me apenas o facto de, a ser assim a vida depois da morte, ela estar agora de novo ao lado do seu Rui.
E deixo as palavras justas e certas de Delfim Sardo:
"Maria Nobre Franco era luminosa, com a intensidade de uma sensibilidade que a fez compreender o seu tempo, por vezes irritar-se com a pequenez e o provincianismo, mas sabendo sempre que pouco importa que não seja a generosa partilha. Foi esta dimensão, da civitas como espaço de troca, de oferta da arte à fruição, que a moveu, que nos moveu com ela e que agora mora, mais silenciosa e cega, nas obras que por ela esperam e que, mais solitárias, a saúdam.”
Não sei de quem é a foto (se alguém souber, que me diga, gosto de dar o seu a seu dono), mas gosto de a recordar assim, como era: alegre, leve, de braços abertos à vida
Já uma vez aqui disse que pão e manteiga constituíam a mais saborosa combinação que a minha boca conhece. Também já confessei que até fiz um workshop de pão, porque é mesmo uma das mais perfeitas invenções do homem. Continuo sem saber fazer pão - ou pelo menos sem saber fazer o pão de que gosto de comer. Mas continuo apaixonado por pão, e sem saber viver sem ele. Num eventual ranking que me obrigassem a fazer, não havia cá pães com cereais, nem o pão do Kaiser (que é excelente, sim), nem pão escuro nem pão da Padaria Portuguesa (que é uma treta, aqui entre nós). Entrariam: - O pão da padaria da Rua Movimento das Forças Armadas, em São Miguel de Alcainça, a poucos quilómetros de Mafra - Algum Pão de Mafra que se consegue comprar nos supermercados de Lisboa - O pão grande da Padaria da Zambujeira do Mar - O pão do André de Alcobaça, que às vezes encontro no Corte Inglês - O pão alentejano da Panificadora de Santo André … E agora, surpresa das surpresas, o “papo-seco” mais clássico de Lisboa, recentemente reinventado e relançado pelos supermercados Pingo Doce! O “papo-seco”, a boa velha carcaça, tinha entrado na lista negra dos pães, desprezado, destratado, e posto no saco sem fundo das misérias que a civilização trouxe à capital. É raro encontrá-lo em boas condições (aqui, em Alvalade, de vez em quando “apanho-o” mais ou menos razoável na Pastelaria Roca, na Avenida das Igreja), leve, com ar, mas com sabor e a pedir manteiga. Não sei quem manda no Pingo Doce, no que a estas matérias diz respeito, mas gostava de saber para agradecer do fundo do coração: os padeiros do supermercado conseguiram “recriar” a boa velha carcaça, aprimorada, sempre fresca, e a um preço imbatível. Não fui só eu quem descobriu esta pólvora - vejo agora muita gente na fila do pão do Pingo Doce para voltar ao bom velho “papo-seco”. É bom voltar a sentir sabores que se julgavam desaparecidos para todo o sempre. E poder colocar a carcaça de novo na lista dos pães preferidos é como reencontrar um amigo perdido: vale pela vida. O resto é manteiga.
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
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