Morrer, renascer, morrer um bocadinho
Agora, que já passaram alguns dias, consigo escrever sobre aquilo a que assisti, em pouco tempo, no enterro da sua mãe: a vida, a lucidez, o sentido de observação e as lições imediatas que o meu amigo maior Miguel Esteves Cardoso conseguiu tirar, racionalizar, verbalizar e partilhar com os que o rodeavam, por breves instantes que fossem, fizeram com que aquele momento triste e sem jeito se transformasse em vida para lá da morte, em prolongamento e consequência, em sentido mesmo do que por natureza não tem sentido. Conseguimos rir, chorar, comover-nos. Conseguimos sentir leveza no peso, e perceber o peso na aparência da leveza.
O Miguel ensina-me na presença e na ausência. Ajuda-me, com a sua atitude, a relativizar as coisas e colocá-las no seu devido lugar, como a dar peso e consistência ao que tantas vezes nos passa ao lado. É tão precioso que não tem valor. E estamos juntos tão menos vezes do que ambos precisávamos. Somos parvos e vamos arrepender-nos. Mas até com isso somos capazes de rir: “à quarta, à uma da tarde, no Saraiva de Nafarros, sempre marcado - quer estejamos ou não. E nenhum de nós tem de avisar o outro”. Só estivemos uma vez, e a combinação semanal tem pelo menos dois anos.
Quando o pai dele morreu, alguns anos depois do meu, ele disse-me e escreveu: “quando morre o nosso pai, começamos a morrer um bocadinho”. Tinha razão. Mas ambos sabíamos que quando nasce um filho, renascemos outro tanto. E neste balanço que aqui nos traz, o que fica é exactamente e apenas o que vivemos e ninguém nunca mais nos tira. Nem a morte.
Na quarta-feira, ao ouvir o Miguel falar dos últimos dias da sua mãe, sentia-a mais viva na voz dele do que nunca. É o que fica. É o que interessa. E não passa.