Nos seus momentos de solidão, o Presidente Cavaco Silva deve seguramente perguntar-se muitas vezes “que mal fiz eu para merecer isto?”… Havia um generoso numero de respostas certeiras a dar a esta pergunta, mas não vale a pena bater mais em quem já bateu no fundo. Deixemo-lo em paz. Talvez apenas notar a ironia dos tempos: o homem que sempre quis fazer tudo com rigor e precisão, e que certamente terá sonhado com um final de carreira luminoso, magnânimo, sólido - sai afinal de cena, no fim do seu segundo mandato, pela porta dos fundos, a medo, engolindo sapos, mostrando em definitivo que nunca foi “Presidente de todos os portugueses”, e sem sequer conseguir juntar a admiração dos seus pares. Sócrates ainda arrebanha 500 num almoço que assinala um ano… de prisão! Cavaco nem livre consegue chegar-lhe aos calcanhares. A ironia não podia ser maior: o derradeiro acto público de Cavaco Silva vai ser dar posse a um Governo caucionado pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda, com o PS na frente. Como se houvesse alguém lá em cima a mexer os cordelinhos e, numa risadinha diabólica, exclamasse: “agora toma, que é para não voltares a dizer que raramente te enganas e nunca tens dúvidas”… E pelo caminho ainda tem que assistir, na TV, a homenagens a um ex-primeiro-ministro sobre quem paira uma nuvem demasiado pesada, mas não o suficiente para o afastar da ribalta. O Presidente enganou-se, e viveu na dúvida, dias demais. Não que a solução encontrada seja perfeita, ou duradoura - não estou a ver a base eleitoral do PCP brincar com o serviço quando António Costa fizer o que Bruxelas obriga a fazer… -, mas a atitude que Cavaco tomou desde o dia das eleições (ou mesmo os avisos que lançou antes delas…) até à última terça-feira, a tal “birra dos 50 dias”, mostrou-nos de que massa é feito aquele homem e como é possível, em democracia, eleger figuras que se revelam bem diferentes dos exemplos que o regime inspira e convoca. Aqui chegado, Cavaco dirá sempre que fez o que tinha a fazer (depois de todas as tentativas para fazer o que não devia). E vai sentir um alivio de consciência no lugar do peso que efectivamente devia ter. Não é bonito de se ver. Não é um final feliz para este Presidente. Não sei se é um bom começo para António Costa. É seguramente um momento infeliz do PCP e do Bloco de Esquerda. Mas acaba por ser uma lição para todos nós: agora sabemos, e é valido por fim para todos os partidos, que na política não há possíveis nem impossíveis. Há apenas a voragem da ambição - e ela não tem limites. Felizmente, em democracia, a lei trava essa voragem e limita a ambição. Do mal, o menos.
É amanhã. Tomam posse a horas impróprias (deviam estar no Parlamento…), mas a pressa é inimiga da perfeição. Agora é um Governo liderado pelo socialista António Costa, caucionado pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda, formando uma maioria que “vence” a coligação vencedora, porém minoritária. Muitos, como eu, votaram num destes partidos - mas antevendo um outro cenário. Nem me passou pela cabeça ver o PS dar esta cambalhota - embora saiba que muitos sonhavam com ela desde sempre. Não interessa. Agora já está. Amanhã toma posse uma lista enorme de ministros e secretários de estado, que mais parece um albergue espanhol: gente do aparelho socialista, independentes, revelações, fieis de sempre, e até algumas mãos invisíveis de Sócrates… Como sempre, gosto de usar a frase que o pai da minha amiga Paula usava nestas circunstâncias, e adoptei: “vamos ver”. É simples, não diz nada, mas diz muito. “Vamos ver” como os grupos parlamentares do PCP e do BE agirão quando lhes virem fugir apoiantes, porque António Costa vai ter de alinhar com a Europa em matérias pouco ou nada populares. “Vamos ver” como o novo Presidente da República vai olhar esta solução inédita e sem precedente na nossa jovem democracia. “Vamos ver” como a esquerda vai aplicar a defesa dos mais indefesos, com que sempre encheu a boca sabendo que gritava contra maiorias absolutas e era derrotada à partida. “Vamos ver” como se concilia um Governo europeu e do euro com partidos contra a Europa e defensores da saída do euro. “Vamos ver” como a ideia de servir Portugal se sobrepõe à ideia de servir um simpático estatuto de “grupo parlamentar” e “partido subsidiado”. Por fim, “vamos ver” se há esquerda em Portugal. Agora é que vamos mesmo desfazer essa duvida, que tem mais de 40 anos…
Ontem, todos os canais de televisão, sem excepção, dedicaram largos minutos dos seus noticiários a um almoço organizado por José Sócrates (ou alguém por ele, dá igual), destinado a homenagear e apoiar… José Sócrates (quem mais poderia ser?!).
25 euros por cabeça.
Não vou comentar o que se disse - e as enormidade que o próprio disse - no decorrer do repasto. Limito-me a algumas perguntas. Estas: homenageia-se José Sócrates por que motivo? Ganhou o Prémio Nobel? Ou o Prémio Pessoa, vá? Salvou um gatinho aflito num telhado? E o apoio, é um apoio a quê? Ao facto de presumivelmente ter andado a movimentar uns milhões de euros sem explicação plausível e com destino duvidoso? Ao facto de, ainda assim, e mercê de uma atabalhoada investigação, ter sido libertado (não inocentado ou absolvido, convém sublinhar) ao fim de um ano? Apoio à circunstância de continuar a ser arguido dos diversos processos em curso? Ou será que é um novo candidato presidencial? Ou quer substituir António Costa no PS? Não percebo. Eu também juntei umas centenas de pessoas, há um ano, num bar de um amigo. Mas não havia preço fixo - cada um pagava só o que consumia… - e tinha uma boa razão: eu fazia 50 anos. Não percebo a razão de Sócrates. Fará 60? Ou persiste apenas em fazer de nós - os que não foram ao almoço, mas seguem as noticias sobre os milhões voadores - parvos? Cá para mim, é isso.
(Crónica publicada nesta manhã de quinta feira na plataforma Sapo24)
Ontem à noite, enquanto na televisão se mostravam as imagens dos tiroteios em Saint-Denis, e se descrevia a meticulosidade com que os militares franceses foram directos à casa de quem sabiam que tinha qualquer coisa a ver com os ataques de sexta-feira passada (não foi por acaso, certamente, que uma mulher se fez explodir no apartamento cercado…), na tasca onde via aquele Telejornal havia uma voz que se levantava em revolta e dizia: - Não percebo isto! Os gajos sabem onde estão os terroristas, mas em vez de lá irem antes, vão só depois dos atentados matarem umas dezenas… O desabafo originou discussão - e como de costume, em todos nós há, além de um treinador da selecção nacional de futebol, um primeiro-ministro e um chefe de polícia. Neste caso foi o chefe de policia que veio ao de cima e deu para um debate onde, no limite, as autoridades prendiam todos os muçulmanos que encontrassem na rua - e depois iam-nos libertando à medida que provassem serem inocentes. Tudo ao contrário do que o nosso estado de Direito manda. Enfim, conversa de tasca… Mas, mais a sério, vale a pena reflectir sobre as estratégias que têm sido aplicadas no combate - muitas vezes, tardia e infelizmente, já só na resposta… - a um novo patamar do terrorismo radical islâmico. É que este novo degrau na escalada do terror distingue-se pelo seu lado aleatório, pelo medo imposto pela incerteza, e por uma (provavelmente organizada) desorganização. Ninguém sabe o que vai acontecer daqui a dez minutos - e é com essa venda nos nossos olhos que os terroristas contam. Eles querem-nos vencer pelo medo e pela insegurança. E numa primeira fase estão a conseguir - nem que seja por esta reacção de rua que pede sangue antes, ou em vez, de pedir justiça. Todos sabemos que por cada ataque terrorista bem sucedido há muitos outros que as autoridades conseguem fazer abortar. Nessa medida, pôr em causa o trabalho dos serviços secretos e das forças de segurança, seja qual for o país ou a organização, pode ser tentador, mas não faz sentido. Mas talvez seja razoável seguir os passos firmes de François Hollande e aceitar que efectivamente “estamos em guerra”, e que as regras da guerra são bem diferentes daqueles que dominam a vida em paz democrática, mesmo sob ameaças potenciais. Estar em guerra não é matar a torto e a direito - mas é defender territórios, criar linhas de defesa, atacar com precisão. É responder ao medo sem medo. No limite, até sem medo de errar. Politicamente incorrecto me confesso - mas é humanamente impossível, a quem assistiu aos últimos 14 anos da vida no Ocidente, pensar de outra forma. Se é para vencer, às vezes vamos enganar-nos. Tomemos isso como parte integrante desta guerra. Quer queiramos, quer não, ainda há um lado certo da vida. E é este.
Costumo citar, muitas vezes, muita gente que escreveu o que escreveria se, sobre este ou aquele assunto, eu decidisse escrever. É uma forma de manifestar acordo com outros, homenagear, estar ao lado. Também pode ser preguiça, mas é raro.
Agora, orgulho mesmo é poder dizer que hoje escreveria isto mesmo - orgulho mesmo e maior por ter sido escrito pelo meu filho António Maria, de 20 anos, na revista online que edita, enquanto estuda em Manchester. A revista é de ler sempre - aqui o link - mas há dias em que bate mais forte. Hoje é o dia. Ou a noite.
É domingo. Este blog faz hoje oito anos de vida. Vou beber um copo com ele e agradecer-lhe a paciência que tem tido para me aturar. E eu a ele. E vocês a nós. Obrigado.
O que escreveu na sua Conta-corrente o escritor português que mais me diz, o professor que estupidamente eu não soube entender no momento certo, o homem que me ensinou a ser humilde. A admirar sem reservas. E a pensar um pouco para lá do óbvio que a paisagem nos oferece:
"Diz NÃO à liberdade que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a liberdade que é tua não passa pelo decreto arbitrário dos outros. Diz NÃO à ordem das ruas, se ela é só a ordem do terror. Porque ela tem de nascer de ti, da paz da tua consciência, e não há ordem mais perfeita do que a ordem dos cemitérios. Diz NÃO à cultura com que queiram promover-te, se a cultura for apenas um prolongamento da polícia. Porque a cultura não tem que ver com a ordem policial mas com a inteira liberdade de ti, não é um modo de se descer mas de se subir, não é um luxo de «elitismo», mas um modo de seres humano em toda a tua plenitude. Diz NÃO até ao pão com que pretendem alimentar-te, se tiveres de pagá-lo com a renúncia de ti mesmo. Porque não há uma só forma de to negarem negando-to, mas infligindo-te como preço a tua humilhação. Diz NÃO à justiça com que queiram redimir-te, se ela é apenas um modo de se redimir o redentor. Porque ela não passa nunca por um código, antes de passar pela certeza do que tu sabes ser justo. Diz NÃO à verdade que te pregam, se ela é a mentira com que te ilude o pregador. Porque a verdade tem a face do Sol e não há noite nenhuma que prevaleça enfim contra ela. Diz NÃO à unidade que te impõem, se ela é apenas essa imposição. Porque a unidade é apenas a necessidade irreprimível de nos reconhecermos irmãos. Diz NÃO a todo o partido que te queiram pregar, se ele é apenas a promoção de uma ordem de rebanho. Porque sermos todos irmãos não é ordenanmo-nos em gado sob o comando de um pastor. Diz NÃO ao ódio e à violência com que te queiram legitimar uma luta fratricida. Porque a justiça há-de nascer de uma consciência iluminada para a verdade e o amor, e o que se semeia no ódio é ódio até ao fim e só dá frutos de sangue. Diz NÃO mesmo à igualdade, se ela é apenas um modo de te nivelarem pelo mais baixo e não pelo mais alto que existe também em ti. Porque ser igual na miséria e em toda a espécie de degradação não é ser promovido a homem mas despromovido a animal. E é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade".
Quem puder ligar-se, amanhã de manhã, ao Hotel Babilónia, na Antena 1, entre as 10:00 e as 12:00, vai poder ouvir Maria Filomena Mónica dizer, na segunda hora, com todas as letras, o que distingue a Europa, e como deve esta mesma Europa responder ao que esta noite se passa em Paris: sem medo, reagir, responder, lutar pelo melhor que temos - liberdade. Mal sabia ela quão premonitórias eram as palavras que disse e gravámos hoje, numa conversa de assombrosa lucidez. A não perder. Na hora ou, mais tarde, na RTP Play.
Enquanto os governos da Europa tratarem os refugiados como uma praga, semelhante a insectos, ou ratos, com direito a muros e arame farpado, discussões estéreis sobre quem recebe quantos, e a sociedade civil se mobilizar com boas intenções mas com meios limitados, o cenário que vivemos neste terrível 2015 só me lembra uma frase de Mark Twain que diz mais ou menos isto: Se a raça humana tivesse criado o Homem, só podia ter vergonha na obra criada. É isso.
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
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