Na íntegra, pode ler-se aqui. No original, foi publicada na edição de Abril de 1991 da revista K. Não entrevistei o escritor nem me senti jornalista à sua frente - assumi a verdade do ex-aluno que se confronta com o Professor de Português, no Liceu de Camões, dez anos antes... Revelei-lhe o percurso que me levou de cábula irritado com um professor exigente a leitor apaixonado dos seus livros TODOS.
Hoje, para mim (ignorante que só lê o que lhe apetece, jamais o que "deve"), Vergílio Ferreira é um dos dois ou três escritores maiores do século XX português. Na semana que passou, a propósito do centenário do seu nascimento, falou-se muito de Vergílio Ferreira. Em breve, volta a falar-se, a propósito dos 20 anos sobre a sua morte. Sou sincero: falo dele todos os dias. Na maior parte das vezes, apenas comigo. Mas falo. E volto às suas páginas a toda a hora. Está por perto, sempre. Deixo uma das respostas às perguntas que lhe fiz, há 25 anos, nessa tarde de Inverno em que me recebeu na sua casa da Avenida Estados Unidos da América:
“Nos meus livros há mortos mas não há cadáveres... faz a sua diferença, não é? A verdade é que a morte, a reflexão sobre ela, é para mim uma forma de valorizar a vida - tal como é contra um fundo de escuridão que um fósforo aceso se vê. Essa reflexão não serve para nos afundar, mas para a vida irromper mais forte. Eu sou consciente - e é em função da morte que para mim a vida tem significado. Na sua idade isto não existe, é verdade, mas é bom que através dos meus livros tome consciência da sua existência. Isso significa que fui útil. Porque é que um jovem não há-de pensar nisso? Neste meu último livro, a morte continua a estar muito presente, mas houve quem me dissesse que, depois de o ler, tinha ganho mais amor à vida. Como o doente quando volta a ser saudável - ou o suicida que é salvo a tempo e passa a olhar o mundo com uma atenção extraordinária, como uma revelação.”
(Nota relevante: As fotografias (geniais) são da Inês Gonçalves. Que saudades de ver o seu génio com regularidade...)
(Crónica originalmente publicada na Lux Woman. Por engano, postei há dias aquela que sai este mês, e deixei esquecida a do mês passado. Cá fica agora. A próxima... Bom, sobre a próxima falaremos em devido tempo!)
Quando, aqui há uns meses, tive uma primeira reunião com a minha colega Joana Stichini Vilela, para desenharmos o que viria a ser um novo programa de televisão, ela sublinhou várias vezes a ideia de podermos assumir o papel de “curadores” de um mundo que tem oferta excessiva para a nossa capacidade de consumo, e essencialmente de escolha. Na altura, confesso, associava a palavra “curador” apenas às exposições de arte, às grandes manifestações culturais, em que surgia uma espécie de “alto comissário” responsável pela selecção de obras. A ideia de “curadoria” estava de tal forma numa esfera de superioridade que cheguei a pensar que seria absurda a utilização da palavra num programa que apenas queria seguir tendências sociais, novos caminhos dos media, saídas para os becos onde a cultura se foi enfiando desde que a internet veio “baralhar” a ordem estabelecida. Neste ponto, vale a pena dizer que a Joana é uma daquelas raras jornalistas que faz a ponte entre gerações com mestria e inteligência: está atenta ao que é novo sem entrar em histeria, respeita o que existe sem aquela atitude muito em voga de “deixa andar” e “logo se vê”. A Joana é uma lição permanente para quem trabalha com ela (e no meu caso, além de partilharmos um corredor de mesas no primeiro ano do jornal “i”, mal nos conhecíamos), pela inteligência com que gere a sensatez e o entusiasmo que a caracterizam e com os quais vive feliz. Adiante. O programa nasceu e eu fui-me habituando à ideia de curadoria aplicada a coisas simples como revistas, ou livros, ou restaurantes. E aos poucos ganhou um estatuto que me fez dar razão, de vez, à Joana: a profissão que mais falta faz nos dias que correm é mesmo a de curador. De tudo. Especado perante um expositor de enchidos num supermercado, não sei de todo por que morcela optar, ou farinheira, ou chouriço (sim, sei que vou morrer por causa do cozido à portuguesa…). Queria um curador ao meu lado, alguém que me dissesse se, apesar da fama do porco preto, para o cozido ou para umas favas não será preferível um chouriço mais corrente. O mesmo curador que depois me ajudaria a escolher a carne para cozer, as couves, e no limite a batata (só a variedade de batatas que existe daria um tratado…). Do supermercado salto para uma livraria e a perdição é completa, entre os livros cujas capas me atraem, os autores que conheço, os livros que a critica recomendou. Da livraria passo para a TV e as séries. Que faço? É impossível acompanhar a voragem daquilo a que Edson Athayde, com muita graça, retratou nesta frase notável: “Um país sem Netflix é como um país sem McDonald’s. As séries americanas tornaram-se o fast food da alma”. E vou por aí fora, numa oferta global sem precedentes em todas as áreas do consumo, e numa rede gigantesca de possibilidades de acesso: a net, as lojas, os centros comerciais, a venda por correspondência, por telefone, porta a porta. Falo por mim: sinto-me cercado e de certa forma acossado por todo este excesso e pela pressão que se lhe associa. Há sempre alguém que nos diz “o quê?! Tu ainda não viste?!”, como se fosse crime passar ao lado de mais uma serie da Fox. “Ainda não foste àquele restaurante?!” - e a resposta “ando com pouco dinheiro para esses luxos” não serve nunca o interlocutor. “Tens de…” é sempre o começo da frase seguinte. Há uma só realidade: quanto mais oferta, maior parece ser a nossa ignorância. Ou a estranha sensação de que nos passa ao lado o que não passa ao lado de mais ninguém. Sei que não é verdade, e sei que não estou sozinho. Mas a noite passada sonhei que tinha despedido a senhora que me limpa a casa uma vez por semana e tinha contratado um curador. Completo. De tudo. Para me escolher os filmes, as séries, os livros, os discos, as revistas, os chouriços, os queijos, os vinhos, as exposições, os colunistas, os pneus do carro. E quem sabe, no futuro, a vida. Toda ela. Não foi um sonho, claro. Foi um pesadelo.
Sempre que há eleições, lembro-me de um episódio caricato que vivi há duas ou três vidas - e que me ajuda a relativizar a vida, as pessoas, a política. Ao ver a reportagem da SIC, com Marcelo Rebelo de Sousa, na passada segunda-feira, primeiro dia do candidato eleito, essa historieta voltou a sentar-se à minha frente. E é irresistível contá-la. Não tem qualquer relevância, mas revela o carácter de uma pessoa. Ou a falta dele. Passou-se algures a meio dos anos 90. Eu era - ainda sou - amigo pessoal de uma então candidata a uma autarquia local relevante no país. Tão relevante que a Sic-Notícias a tinha escolhido para ser uma das pessoas que protagonizaria um frente-a-frente com o candidato que se lhe opunha. Era um tempo em que ainda se respeitavam as decisões editoriais, e o canal escolheu meia-duzia de autarquias cujo peso mediático merecia atenção redobrada. Nada habituada a debates deste tipo, menos ainda na TV, pediu ajuda aos seus amigos, desafiando-os para algumas noitadas de perguntas e repostas que podiam surgir no programa. Do meu lado, pediu-me que levasse mais um jornalista. Do seu lado, levou dois camaradas seus. Um deles era José Sócrates, então jovem deputado do PS - e foi assim que conheci a figura. Não apenas me pareceu simpático como criou empatia comigo - e conseguiu. De tal forma que, na semana seguinte, na segunda noitada de perguntas e respostas à candidata, jantámos os dois, umas horas antes, um belo peixe ao sal num restaurante de Algés. A amizade não passou para lá dessas duas ou três noites. Mas Sócrates fez questão de me tratar por “tu”, de que o tratasse por tu, e não evitou a conversa informal entre duas pessoas com uma amiga comum, idades próximas, ideias não muito divergentes. A verdade é que a nossa “candidata” ganhou, uns dias depois (ou antes, já não sei precisar…) António Guterres era nomeado primeiro-ministro depois de vencer quase em simultâneo eleições gerais - e, no meio de todo este alvoroço socialista, a minha amiga, entretanto alcandorada a presidente de câmara, comemorava, como habitualmente, o seu aniversário, com uma festa em casa. O (futuro) governo de Guterres marcou presença em força. Ainda não havia tomado posse, mas era como se já fosse: segurança reforçada, policia à porta de casa, aparato qb. Senti-me mais numa festa política do que, como em anos anteriores, num aniversário de uma amiga. Passado o crivo da segurança, lá entrei na festa. A animação reinava, até porque parte daquelas pessoas já sabia que ia pertencer ao novo Governo, o que dava algum suplemento de vitalidade ao evento. Todas as pessoas me trataram da mesma forma como antes me haviam tratado: havia quem me cumprimentasse com um “você” próximo e simpático, como Guterres e Ferro Rodrigues, havia quem mantivesse a frieza e distância anteriores, como Armando Vara, havia quem não me conhecesse e nem sequer olhasse. Havia de tudo, até pessoas que só me conheciam por ser “o filho do Rolo Duarte e da Maria João”, como o Duarte Brás.
Só notei uma diferença. Ao ver-me, José Sócrates -. o mesmo Zé que duas semanas antes me tratava por tu, e falava de peixe ao sal, futebol e política durante um jantar descontraído - olhou-me lá de cima dele próprio, numa repentina e nova pose, entre a superioridade e a distância, e perguntou:
- Você, também por aqui?
Nesse momento, percebi quem ele era e a que espécie de gente pertencia. E não me enganei. Nem que fosse apenas por este traço de carácter, Marcelo Rebelo de Sousa merece a eleição que ganhou. Pode ter um sem número de defeitos - mas acredito que a sua atitude para com aqueles com quem se cruza será a mesma de sempre. Antes e depois do lugar para que foi eleito. Faz toda a diferença.
Falemos como no futebol: uma triangulação. Foi isso que se deu naquela hora de almoço de sexta-feira, 24 de Junho de 1994. Eu estava a almoçar com a minha (então) noiva, Cristina, e a dupla José Eduardo e Florbela Bem, responsáveis da empresa “Casa do Marquês”, a quem entregáramos a produção do nosso casamento, marcado para Setembro desse ano. Como se calcula, para mim aquilo era o mais relevante que podia existir naquele dia, e não havia nada que abalasse a discussão sobre a cor das toalhas das mesas e o menu que faria da cerimónia algo inesquecível. Porém, ao mesmo tempo, havia uns tantos camionistas a bloquear a Ponte 25 de Abril, contestando um aumento de 50% nas portagens, e a tensão aumentava a cada minuto, com policia de intervenção presente e confrontos iminentes. Um visionário do jornalismo, chamado Carlos Cáceres Monteiro, teve a percepção de que aquele momento determinava e marcava o fim de Cavaco Silva enquanto primeiro-ministro. Ele era director da Visão, revista com escassos anos de vida, e eu era seu editor-geral, espécie de numero dois (em conjunto com um editor-coordenador), e ambos perdíamos dias e dias, em reunião, a tentar fazer uma newsmagazine que Portugal nunca tinha tido. Enquanto debatia tranches de salmão, queijos da serra e vinhos do Douro, o Cáceres telefonava-me desesperado (e sem sucesso…) - queria uma reunião de emergência para avançar para uma edição extra da revista (dado que a edição normal tinha sido publicada na véspera, quinta-feira) sobre o bloqueio da ponte. Falhou a triangulação. O assunto não me incomodou minimamente - com o meu faro politico semelhante ao de um anósmico, entendia que se tratava de um caso de policia que rapidamente se resolveria. Não foi. Foi o “buzinão” que acabou com Cavaco Silva na governação, para bem de todos nós (ainda que lamentavelmente não tenha acabado com o politico Cavaco Silva, como agora verificamos…) Nessa sexta-feira, à tarde, ainda argumentei que o caso não merecia uma edição especial - mas era evidente que merecia, e que o Cáceres tinha razão. Fizemo-la e eu lá estive, da capa à última página. Sempre a protestar, claro… Lição primeira: a vantagem de trabalhar com os mais velhos e experientes é aprender todos os dias, e ao mesmo tempo ganhar a humildade que só o tempo nos cola à existência. O Cáceres Monteiro faz falta ao jornalismo cata-vento dos tempos que correm. Lição segunda: em democracia, não há Cavaco deste Mundo, com a sua atitude arrogante e prepotente, que vença uma massa de trabalhadores revoltados e furiosos. Lição final: nessa medida, Cavaco Silva foi útil. Com ele aprendemos tudo o que não se pode nem deve fazer em democracia. Espero que esta última lição seja clara para os presidentes que se seguem… Triangulação terminada.
(Crónica publicada originalmente na revista Lux Woman. Já está nas bancas a deste mês...)
Começou por ser uma carga extra de ansiedade. Evoluiu para uma pequena angústia, daquelas que nos deixa num estado algures entre a inquietação e o desconforto. Ameaçava tornar-se um problema grave - não fosse eu ter tomado a atitude correcta. Neste caso, um claro “Calma! Menos! Isto faz algum sentido?!” Não tardei a ganhar tranquilidade. Não, não faz sentido. A saber: redes sociais aproximaram pessoas, promoveram reencontros, mataram ou adormeceram solidões, construíram relações. Em muitos casos, substituíram o café de esquina, ou o bar onde iríamos com os amigos, se os tivéssemos. Sempre defendi a ideia da rede social, e acho o Facebook uma extraordinária invenção - que encurtou distâncias e, ao contrário do que por aí se diz, nos tornou mais humanos. Mesmo quando mentimos. Mas há limites. E o limite começa nos modismos, nas tendências, nos rebanhos. Até que ponto o mundo viral nascido nas redes sociais não está agora a tomar conta das nossas vidas, determinando comportamentos, éticas, princípios? Um exemplo: a moda da corrida. Agora toda a gente corre. Há aplicações que medem os sucessos dos que correm 5, 10, 100 quilómetros. Há fotografias de caras tão suadas quanto felizes, e cuja ambição é “superar” a corrida anterior. Eu não corro. Eu vou andando. E gosto assim. No começo, quando vi amigos a exibir no Facebook as proezas de correr do Rossio a Algés, brincava: “Porque não apanhaste um táxi?”. Rapidamente percebi que não se brinca com coisas sérias - e eles levam isto a sério. Correr é o sushi dos tempos que correm: está na moda, faz bem, e é cool. Cheguei a interrogar-me se não devia reaproveitar os tênis, comprados há anos para caminhar junto ao rio, e começar também a correr… Também me detive sobre cães abandonados a precisar de resgate urgente. É outra pressão social sobre quem anda nas redes sociais: a moda do cão. Quem não tem cão, praticamente não existe. Quem não resgata um animal, é um verdadeiro selvagem. E quem não exibe animais fofinhos na sua página de Facebook é basicamente desumano. Juntemos a estas “obrigações” os aniversários, os obituários, as petições, as causas, os eventos sociais, a programação cultural. Juntemos tudo e o resultado é este: uma ansiedade crescente, uma angustia sem sentido, e tempo perdido deitado no sofá da sala. Sinto-me mal porque não corro, não adopto um animal abandonado, não partilho uma cena de violência gratuita. Não exibo os meus momentos de tristeza, mas também penso duas vezes antes de mostrar os momentos felizes. Posso incomodar quem sofre, não? Não me apetece. Fujo, se for caso disso; terei um cão, quando for rico e puder ter uma quinta; e no tal dia em que for rico, não assino petições, porque me chego à frente - nem apoio causas, porque me envolvo nelas. Não vou correr - não me apetece. E lembro-me sempre de Luis Sttau Monteiro, que um dia entrevistei, e confessou que não entendia o fascínio das massas pelos piloto de Fórmula Um: “correm, correm, mas chegam sempre ao mesmo sitio quando aquilo acaba. Ao menos os coelhos têm uma cenoura que os chama e desafia…” Já basta o que é obrigatório: a família, o trabalho, o Estado. Está bem assim. Tal como não esqueço o dia em que li que rico não era quem tinha o telemóvel topo de gama, mas sim quem podia dar-se ao luxo de dispensar o telemóvel, também agora me pergunto: feliz não será aquele que, desligado das redes, se possa dar ao luxo de viver como quer, a pé ou de carro, com ou sem animais, mergulhado num bitoque ou sem sequer saber que morreu alguém que afinal mal conhecia? Há dias assim, em que quero apenas, como escreveu Miguel Torga, “saber as marés / Os frutos e as sementeiras / Tratar por tu os ofícios / Entender o suão e os animais / Falar o dialecto da terra / Conhecer-lhe o corpo pelos sinais”. Voltar ao começo.
Um. O discurso de vitória de Marcelo Rebelo de Sousa explica e amplia por que ganhou à primeira e vai ser Presidente de Republica. Foi uma comunicação de grande estadista, de homem de consensos, de memória e futuro, e de esperança sem falsas expectativas. Assim ele seja este Marcelo de ontem à noite, e vamos ter um dos melhores Presidentes destes 40 anos de democracia. Ainda bem que votei nele.
Dois. O miserável resultado de Maria de Belém constitui um sinal e, quem sabe, uma esperança. Ela fez questão de nos demonstrar que põe os aparelhos partidários acima das pessoas, que a política é uma carreira, e que os partidos são sacos de gatos que se assanham no momento de abocanhar o peixe disponível. Espero que, com a sua atitude (e os votos que perdeu com ela), e com o que ela revelou sobre os Partidos do chamado “arco da governação” o pior, se entenda melhor o que tem de mudar, o que temos de erradicar. Maria de Belém queria abrir a porta da virtude - e escancarou a porta dos fundos.
Três. Não acredito que tenha havido um só eleitor de Marisa Matias que tenha acreditado sinceramente na sua passagem sequer à segunda volta. Mas, ao votar nela, aquela massa de mais de 400 mil pessoas disse aos outros dez milhões de portugueses - e essencialmente ao PCP e ao PS - que ser de esquerda começa a ser algo diferente de seguir a cassete de Jerónimo de Sousa ou o apelo desesperado do PS quando está à beira de perder.
Quatro. Podemos brincar com os votos em Tino de Rans ou nos outros candidatos, mas esses votos não deixam de ser manifestações. De eleitores fartos de “mais do mesmo”, de eleitores a quem tanto faz um Tino ou outro qualquer concorrente da Casa dos Segredos, de eleitores para quem isto da democracia é uma treta sem saída. Nesse sentido, a brincadeira é séria e merece ponderação. A História ensinou-nos que é nestes momentos que os loucos, os radicais, os ditadores e os megalómanos aproveitam para se chegarem à frente. E isso ninguém quer.
Gosto das tais “ridículas” cartas de amor de que Pessoa falava. Gosto do cuidado que a “Guerra & Paz” colocou na edição de “As Grandes Cartas de Amor”, um livro que junta Oscar Wilde e Florbela Espanca, Mussolini e Mark Twain, Proust e Freud, numa selecção tão variada quanto rica, inteligente e (até…) divertida. Excelente livro (edição de Elizabete Agostinho) para provar que a leveza pode encontrar-se com a profundidade, sem choques frontais, e com bons resultados. Deixo-vos com um bocadinho de uma carta de Maria Barroso a Mário Soares. Estamos em época de Presidenciais, é de amor em tempo de guerra que falamos nos idos de 1962…
Tornou-se um dos temas mais debatidos nesta campanha morna: Marcelo Rebelo de Sousa levaria vantagem porque foi, ao longo dos últimos anos, comentador politico na TV e na rádio. Ou seja, tornou-se popular. Que eu saiba, não há estudos que comprovem essa relação directa - e a minha intuição diz-me que a popularidade que a presença nos media deu a Marcelo pode, no limite, prejudicá-lo, em vez de o eleger. Não tenho a certeza de que o eleitor comum queira ver na Presidência da República um homem que comentou na TV, que nos divertiu, que soube levar a política até ao lado mais lúdico que pode ter. Como ele, muitos outros fizeram o mesmo - de Marques Mendes a Jorge Coelho, e nunca essa circunstância os tornou presidenciáveis. Sendo um homem académico, culto, com carreira, com perfil - razões que me levam a não esconder que votarei nele -, Marcelo é também o “malandrão” deste universo, o homem com sentido de humor (que falta à maioria dos eleitores, e faltou ao PR em exercício…), e acima de tudo uma figura que não gosta, como Cavaco gostou, de ser paizinho da Nação. Bem sabemos como este país ama quem tome conta dele, mas Marcelo não assumirá esse papel. Ele será, acredito, efectivamente Presidente da Republica, com a marca de uma personalidade que cativa e convoca aqueles de nós que não levam a vida demasiado a sério, cinzenta, sem graça… Assim sendo, a vitória não são favas contadas, e a ideia de que ganha à partida só o prejudica. A popularidade é uma faca de dois gumes: foi ela que levou Carlos Cruz à prisão, como foi ela que levou Lourdes Pintasilgo a tentar (e falhar) ser Presidente; foi a popularidade que fez de Cristina Ferreira um fenómeno - mas terá sido também essa mesma popularidade que acabou, politicamente, com Manuel Maria Carrilho. Dar como adquirido esse conhecimento público é um pouco como aceitar que os ataques terroristas nos tolhem os movimentos. Nuns casos, pode ser verdade. Noutros, terão o efeito contrário. Nesse sentido, as eleições de domingo constituem uma incógnita. Não tenho qualquer palpite para este dia 24 de Janeiro. Só gostava, sinceramente, que os eleitores não dessem razão ao Rodrigo Moita de Deus, que num programa de TV recente, onde participo, me deixou a pensar nesta ideia, porventura certa, mas obviamente triste: os portugueses estão tão desiludidos, e sentem-se tão enganados que, se pudessem, evitavam esta “coisa” do voto, porque lhes é indiferente a ideia de democracia. Temo que o Rodrigo tenha razão. E tenho medo. Talvez a TV, afinal, possa ajudar…
Já tinha dado a cara em televisão sob o olhar do Fernando Matos Silva. Mas era tudo gravado, em filme, ambiente controlado. Quando me tocou o primeiro directo da vida, no canal 1 da RTP, às sete da tarde, todos os dias, estremeci, hesitei, e comecei a pôr problemas, condições e “ses”. Com uma infinita paciência, o então director de programas Carlos Pinto Coelho aguentou-me… Até ao dia em que conheci o Fernando Ávila. Setembro de 1988. Aquela energia boa e contagiante, aquele humor irresistível e cheio de razão - “ouve, se a VT falhar… estás calçado, não estás? É fácil: fazes sapateado!” - e uma capacidade de ser, a um tempo, o amigo e o colega, levaram-me à rendição. Ficámos amigos e cúmplices para sempre. E atirei-me de cabeça. Hoje, tenho a certeza de que a minha vida profissional não teria sido a mesma sem a personalidade, a amizade e o talento do Fernando - como sei que aprendi com ele a converter os entraves diários em meros acidentes de percurso sem relevância. Ensinou-me muito mais do que julgava, e muitíssimo mais do que os meses que trabalhámos juntos, e os poucos anos em que partilhamos o mesmo (maluco) prédio, ali ao Rato. Fui surpreendido com a sua morte - e este fim de semana tem sido uma montanha russa: ora acho que esta vida é mesmo uma merda, ora acho que o Fernando merece que valorize mais a vida que ele não vai poder viver. Vou acrescentar um ponto a uma ideia que, nas mortes dos nossos pais, eu e o Miguel Esteves Cardoso começámos a desenhar. A ideia inicial: quando morre o nosso pai, começa a morrer um bocadinho de nós. Acrescento agora: quando morre alguém de quem gostamos muito, começa a morrer um bocadinho do nosso sorriso. Acho que é isso.
(Crónica publicada quinta-feira passada, na plataforma Sapo24)
A semana foi tão marcada pela figura e pela obra de David Bowie que é difícil escapar-lhe. Já tudo foi dito, as canções recordadas, as múltiplas imagens do camaleão devidamente assinaladas. Há primeiras páginas de jornais notáveis, como a do francês Liberation e do britânico The Guardian (ver post anterior); há textos que nos enchem o coração, como os de Miguel Esteves Cardoso no Público (online e em papel). Há memórias que nos remetem para o tempo que cada um tem de Bowie. Ele começou a sua carreira no ano em que nasci - por isso o meu tempo de Bowie é mais de Absolute Beginners ou de Let’s Dance do que Space Oddity. Mas todos nós - um pouco como o Tintin, dos 7 aos 77 anos - temos qualquer memória, qualquer marca daquele homem. E esse é o sonho de um artista, de um criador: deixar uma marca que fique para lá dele próprio, que seja perene e que tenha espaço na História que o futuro fizer sobre este presente. Bowie tem esse espaço assegurado e garantido. Durante muitos séculos, foi também esse um desígnio, mesmo que não assumido ou deliverado, dos governantes. Olhar para a História - não é preciso sair da Europa… - é encontrar um generoso conjunto de grandes figuras cuja presença na política de cada país justifica os nomes de ruas, praças, as estátuas, e cuja marca indelével garante o lugar na galeria de que é feita a nossa História. Porque inovaram, porque souberam dar um passo em frente ou reconhecer um erro, porque ousaram, porque nos trouxeram ideias, regimes, anteciparam futuros. Penso muito nessa vasta galeria quando olho o momento que vivemos. Tanto penso em Churchill quanto em Vasco da Gama, em Humberto Delgado como em Miterrand, em Helmut Kohl como em Kennedy, em Martin Luther King como em Lech Walesa. E pergunto-me: a História falará de Cavaco Silva? De Durão Barroso? De António Costa? De Santana Lopes? De Pedro Passos Coelho? Tudo bem, deixemos Portugal de fora. Imaginam referências relevantes a Hollande ou à Sra. Merkel? Acham que as ideias de David Cameron serão estudadas daqui a cem anos? Imaginam Alexis Tsipras servir de exemplo para uma qualquer teoria? Jean-Claude Juncker existirá nos compêndios? Vivemos o tempo da governação sem ideias. Um tapa-buracos que abre novos buracos, reformas que anulam e substituem reformas, mudanças que pouco ou nada mudam. Sou sincero: nas ultimas dezenas de anos, a única área que vi tornar-se eficaz, assertiva e útil (para saciar a fome do Estado, claro), foi mesmo a dos Impostos. Tudo o resto navegou entre o mais do mesmo ou o remendo que abre outra brecha ao lado. Não imaginava, quando estudei os grandes líderes que fizeram a História do Mundo, viver num tempo de burocratas e gestores, sem políticos e sem ideias. Talvez por isso me tenha virado mais para os lados da cultura, da criação - onde, apesar de tudo, continua a haver quem nos surpreenda, comova, deixe a pensar. E por aí volto ao começo: David Bowie foi e vai ser a figura destes dias não apenas porque a sua popularidade seja um argumento de venda - mas porque ele nos diz respeito e mexe connosco. Acrescentou algo ao que já existia. E só assim a vida faz sentido.
Gisela João O doce blog da fadista Gisela João. Além do grafismo simples e claro, bem mais do que apenas uma página promocional sobre a artista. Um pouco mais de futuro neste universo.
Uma boa frase
Opinião Público"Aquilo de que a democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço, solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e coragem." Pacheco Pereira
Subscrever por e-mail
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.