Comédia ou reality-show?
(Crónica de ontem na plataforma Sapo24)
A Constituição da Republica Portuguesa não estabelece um patamar acima do qual (ou, mais rigorosamente, abaixo do qual…) a ideia de democracia ganha contornos de ridículo, absurdo, de estapafúrdio, de risível. Se o fizesse, tenho a certeza que os momentos que vivemos nestas semanas já estavam no top. Pior: o ridículo tem passado no horário nobre da TV.
Ter de ver, diariamente, debates (em que eles se levam a sério…) entre Tino de Rans e Marcelo Rebelo de Sousa, Maria de Belém e Sampaio da Nóvoa, Marisa Matias e Edgar Silva, Paulo Morais e Henrique Neto, Cândido Ferreira e Jorge Sequeira, e depois baralha e torna a dar para que todos se encontrem em igualdade de circunstâncias, tem qualquer coisa que anda entre a sitcom e o reality-show. São umas dezenas largas de horas de televisão sem qualquer sentido, na maioria dos casos sem conteúdo, entre pessoas que todos sabemos que não vão passar do primeiro domingo eleitoral. Numa absurda interpretação de equilíbrio informativo, os media alinharam nesta farsa, onde o critério não é jornalístico, é puramente aritmético e igualitário. Exactamente o contrário do que se pede ao jornalismo: escolha, hierarquia, relativização, análise e um sensato uso do tempo de antena.
Aquilo a que assistimos é a mais clara falta de bom senso e rigor. É colocar todos ao mesmo nível - uma falsidade -, e dar-lhes igual relevância, coisa que qualquer estagiário de jornalismo saberia que era, no mínimo, pouco criteriosa.
Aliás, ouvir os dez candidatos de olhos fechados é uma experiência fascinante, porque em segundos separamos o trigo do joio. Basta atentar na forma como falam. Usam sem qualquer pudor a expressão “quando eu for Presidente”, equiparam-se uns aos outros como se tivessem os mesmos percursos, confrontam-se militantes do mesmo partido (Henrique Neto e Maria de Belém, por exemplo) como se não fossem camaradas. Além da atitude previamente vencedora - alguém lhes ensinou, sabe-se lá porquê, que marketing politico é isso… -, resvalam frequentemente para áreas que não lhes dizem respeito, caso sejam eleitos, e que perigosamente revelam ignorância sobre os limites dos poderes presidenciais.
Assistir a este triste espectáculo remete-me para os primeiros anos da revolução, quando se levantava uma pedra da calçada e estava um partido politico lá debaixo, sempre disponível para governar. Mas há uma diferença substancial entre o ridículo de alguns desses momentos passados e o absurdo actual: é que nessa altura toda a gente se interessava por política e pelos caminhos que Portugal devia trilhar; hoje, vivemos a mais desinteressante campanha de que me lembro e corremos o risco de ter a mais alta taxa de abstenção de sempre. E isso não é apenas triste - é um falhanço do regime, num momento em que tanto precisamos de empenho e interesse. Não me espantaria se aparecesse um qualquer estudo de opinião que concluísse que esta overdose de debates contribui fortemente para a indiferença generalizada que por aí vai. Há pior, para quem quis igualdade de oportunidades e direitos iguais para todos?