Quem fica na História?
(Crónica publicada quinta-feira passada, na plataforma Sapo24)
A semana foi tão marcada pela figura e pela obra de David Bowie que é difícil escapar-lhe. Já tudo foi dito, as canções recordadas, as múltiplas imagens do camaleão devidamente assinaladas. Há primeiras páginas de jornais notáveis, como a do francês Liberation e do britânico The Guardian (ver post anterior); há textos que nos enchem o coração, como os de Miguel Esteves Cardoso no Público (online e em papel). Há memórias que nos remetem para o tempo que cada um tem de Bowie. Ele começou a sua carreira no ano em que nasci - por isso o meu tempo de Bowie é mais de Absolute Beginners ou de Let’s Dance do que Space Oddity. Mas todos nós - um pouco como o Tintin, dos 7 aos 77 anos - temos qualquer memória, qualquer marca daquele homem.
E esse é o sonho de um artista, de um criador: deixar uma marca que fique para lá dele próprio, que seja perene e que tenha espaço na História que o futuro fizer sobre este presente. Bowie tem esse espaço assegurado e garantido.
Durante muitos séculos, foi também esse um desígnio, mesmo que não assumido ou deliverado, dos governantes. Olhar para a História - não é preciso sair da Europa… - é encontrar um generoso conjunto de grandes figuras cuja presença na política de cada país justifica os nomes de ruas, praças, as estátuas, e cuja marca indelével garante o lugar na galeria de que é feita a nossa História. Porque inovaram, porque souberam dar um passo em frente ou reconhecer um erro, porque ousaram, porque nos trouxeram ideias, regimes, anteciparam futuros.
Penso muito nessa vasta galeria quando olho o momento que vivemos. Tanto penso em Churchill quanto em Vasco da Gama, em Humberto Delgado como em Miterrand, em Helmut Kohl como em Kennedy, em Martin Luther King como em Lech Walesa. E pergunto-me: a História falará de Cavaco Silva? De Durão Barroso? De António Costa? De Santana Lopes? De Pedro Passos Coelho?
Tudo bem, deixemos Portugal de fora. Imaginam referências relevantes a Hollande ou à Sra. Merkel? Acham que as ideias de David Cameron serão estudadas daqui a cem anos? Imaginam Alexis Tsipras servir de exemplo para uma qualquer teoria? Jean-Claude Juncker existirá nos compêndios?
Vivemos o tempo da governação sem ideias. Um tapa-buracos que abre novos buracos, reformas que anulam e substituem reformas, mudanças que pouco ou nada mudam. Sou sincero: nas ultimas dezenas de anos, a única área que vi tornar-se eficaz, assertiva e útil (para saciar a fome do Estado, claro), foi mesmo a dos Impostos. Tudo o resto navegou entre o mais do mesmo ou o remendo que abre outra brecha ao lado. Não imaginava, quando estudei os grandes líderes que fizeram a História do Mundo, viver num tempo de burocratas e gestores, sem políticos e sem ideias.
Talvez por isso me tenha virado mais para os lados da cultura, da criação - onde, apesar de tudo, continua a haver quem nos surpreenda, comova, deixe a pensar. E por aí volto ao começo: David Bowie foi e vai ser a figura destes dias não apenas porque a sua popularidade seja um argumento de venda - mas porque ele nos diz respeito e mexe connosco. Acrescentou algo ao que já existia. E só assim a vida faz sentido.